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Você tá perdendo o decoro e nós não queremos isso (2025)

1. A fala da Cris
2. Foco no aluno
3. Um trecho do Goffman
4. Outro trecho do Goffman
5. Se a Cris...
6. Já passou


1. A fala da Cris

Na reunião do RCN de 26/jun/2025 a Cris fez a fala abaixo; pra entender melhor o contexto veja a página sobre a reunião. Pra ir pro ponto onde a fala da Cris começa clique nesta timestamp: 1:31:34; esse link vai pra transcrição, e lá as timestamps são links pra pontos do áudio no Youtube. Eu deletei algumas das hesitações da Cris - alguns "é..."s e algumas outras.

- Pessoal, o que eu queria falar é justamente nesse sentido da comunicação. A gente tá com um problema de comunicação, tá faltando clareza na comunicação... é... aproveita, Eduardo que você tá aí respirando, só escuta uma coisa que eu queria dizer... é... você tem realmente uma abordagem... eu não tou nem falando em relação à disciplina, mas em relação à sua maneira de se comunicar, ou de comunicar suas demandas, suas necessidades, suas insatisfações... que foge um pouco do nosso "normal", entre aspas, bem aspas... e quando você vem com documentos, aí você coloca um monte de link, aí vai pra lá, vem para cá, isso, é... de certa forma dificulta manter a pessoa interessada naquilo que você tá querendo que ela leia, naquilo que você tá querendo que ela conheça... e eu tô falando isso porque eu peguei parte desse material que você colocou, que você enviou por e-mail... eu tive, é... em alguns momentos, é... essa atenção a você. Então eu tô falando como alguém que leu que foi lá e leu. Mas também tô falando como alguém que teve muita dificuldade de entender. É confuso! Acho que você tá precisando melhorar a sua maneira de comunicar as coisas - suas intenções, seus sentimentos... o que tá se passando com você dentro da disciplina em relação aos alunos, o que tá se passando com você em relação à comunicação profissional, ou seja, com seus colegas... e aí você se exaspera, como agora... eu percebi, todo mundo percebeu na sua respiração que você não tava legal. Então você perde o decoro! Você tá perdendo o decoro! E a gente não quer isso! Eu, particularmente, não quero isso porque isso faz você perder, e... e acaba com todos nós aqui perdendo o foco no mais importante, que é o aluno... a gente tem que ter foco no aluno! Ele é que é o nosso principal objetivo. A avaliação que você aplica pra ele o objetivo é direcionar a ele os enunciados e não fazer menções e observações de outras pessoas, quaisquer que sejam... não sei se você tá conseguindo me escutar porque como a gente tá percebendo você tá alterado, e isso é muito difícil, realmente, ouvir o que o outro tá falando quando a gente tá alterado... então acho até que a gente devia encerrar de forma prudente pra você não continuar aí nesse processo, nesse looping... e a gente seguir improdutivo nessa questão. E acho que a gente devia fazer sim o encaminhamento, concordo com o Walter, concordo com o Fábio, pra o bem de todo mundo, para minimizar esse excesso de trabalho dessa banca, e pra você ter a oportunidade de reorganizar, de reformular, o seu trabalho como professor, o seu trabalho como docente. Porque como o Reginaldo falou, você tá dentro, você é concursado... e não foi ontem, não foi mês passado, nem ano passado... então você tá aqui, cara, é seu trabalho, tá? Então, assim, eu acho que de cara a gente já tem consequências, né, essa falta de decoro já tá trazendo consequências pra instituição! Tá colocando a gente em xeque, tá comprometendo a credibilidade da disciplina, a credibilidade do departamento, a credibilidade da universidade enquanto comunidade de ensino... então eu acho que a gente tem que tomar sim uma atitude, e não é contra ninguém, Eduardo, presta bem atenção... não é contra você e nem a favor também de nenhuma pessoa em particular. É em favor da instituição a qual a gente representa. Tá? Essa é a minha fala, que eu vou encerrar por aqui, e eu sugiro inclusive que a gente amenize e que a gente tente fazer um encaminhamento como o Fábio, o Walter, e eu acho que Ana Isabel e o Reginaldo já colocaram isso, né, no próprio processo aí do... do relatório. Obrigada.

À primeiríssima vista a fala da Cris é impecável: os meus coleguinhas estão muito, muito, muito ocupados, e se eu não for super claro, super sucinto, e se eu não usar o tom certo ninguém vai ouvir o que eu tenho pra dizer. Mas à segunda vista a fala dela tá toda bugada: 1) os meus coleguinhas vão conseguir resolver vários problemas bem mais rápido quando eles souberem certas informações, 2) a estratégia dela de me tratar como uma criança descontrolada tendo um chilique só funciona a curtíssimo prazo - veja as seções "É óbvio", "Tomar providências" e "Mais horizontais" do "Ordens burras, versão catchorro", e 3) pra mim é muito estranho em pleno 2025 alguém reclamar de um protesto que incomoda, como se a gente não tivesse passado os últimos 12 anos, pelo menos, discutindo sobre as pessoas que dizem que "pode protestar na rodovia desde que não atrapalhe o trânsito e não atrase ninguém" e as que consideram que numa manifestação de 100 mil professores na Cinelândia por melhores condições de trabalho os 100 mil professores perdem totalmente a razão quando uma pessoa picha uma parede ou quebra uma vidraça do Santander - obs: preciso achar o meus melhores links sobre isso! Tem o "Ok, mas" o post sobre Black Blocs, e o "Ninguém lê coisas grandes", mas preciso lembrar onde estão os outros...


2. Foco no aluno

Eu discordo totalmente deste trecho da fala da Cris:

(...) a gente tem que ter foco no aluno! Ele é que é o nosso principal objetivo. A avaliação que você aplica pra ele o objetivo é direcionar a ele os enunciados e não fazer menções e observações de outras pessoas, quaisquer que sejam.

Um amigo meu usou os termos "universidade privatizada" e "universidade democrática" - compare com a "universidade militar" e a "universidade de chinelo" daqui, e com o "espírito da universidade" daqui.

Muitos alunos estão chegando na universidade totalmente perdidos, e ao invés deles verem a universidade como um lugar onde eles vão experimentar vários modos de se relacionar com outras pessoas, vão criar redes de contatos, e vão "aprender a fazer as perguntas que ninguém estava conseguindo fazer", eles vêem a universidade como um lugar onde eles só assistem as aulas, fazem as provas, e fazem perguntas pro ChatGPT. Se eles tiverem acesso às nossas discussões sobre isso - incluindo as brigas - vai ser muito mais fácil eles descobrirem como mudar de padrão.

Além disso o termo "foco no aluno" pode ter muitos significados - acho que a gente tem que desmontar ele em vários, como eu fiz com o termo "o trabalho do departamento" aqui.


3. Um trecho do Goffman

Pra explicar o resto do que eu pensei eu vou começar citando dois trechos de um ensaio do Erving Goffman de 1955. Repare que esse ensaio fala de um mundo onde cada pequeno gesto tem consequências, e que é bem diferente do mundo atual, em que a gente pode fazer cagadas incríveis e basta a gente botar a culpa nos remédios psiquiátricos que a gente tá tomando agora e dizer que a gente vai mudar na nossa próxima ida ao psiquiatra.

O primeiro trecho é este (GoffmanFacePtP9, p.18):

Assim como esperamos que um membro de qualquer grupo tenha respeito próprio, também esperamos que ele mantenha um padrão de consideração; esperamos que ele realize certos esforços para resguardar os sentimentos e a fachada dos outros presentes, e esperamos que ele faça isso voluntária e espontaneamente por causa de uma identificação emocional com os outros e com os sentimentos deles. Como consequência, ele não estará inclinado a testemunhar a desfiguração [defacement] dos outros. Em nossa sociedade, chamamos de "sem-coração" uma pessoa que consegue testemunhar a humilhação de outra mantendo impassivelmente um semblante frio, assim como aquela que consegue impassivelmente participar de sua própria desfiguração é considerada "sem-vergonha".


4. Outro trecho do Goffman

Isso aqui é outro trecho (GoffmanFacePtP20, p.29):

Um desvio importante do ciclo corretivo padrão ocorre quando um ofensor desafiado abertamente se recusa a considerar o aviso e continua com seu comportamento ofensivo, em vez de consertar a atividade. Essa jogada transfere o jogo de volta para os desafiantes. Se eles aprovarem a recusa de suas exigências, ficará claro que seu desafio era um blefe e que o ofensor "pagou para ver". Esta é uma posição insustentável; eles não podem derivar uma fachada para si mesmos dela, e tudo que poderão fazer é vociferar. Para evitar esse destino, eles têm a opção de algumas jogadas clássicas. Por exemplo, eles podem apelar para uma retaliação violenta e mal-educada, destruindo ou a si próprios ou a pessoa que se recusou a ouvir seu aviso. Ou elas podem se retirar da ocasião visivelmente ressentidas - justamente indignadas, ultrajadas, mas confiantes numa vindicação definitiva. Ambos os métodos servem para negar ao ofensor seu estatuto enquanto participante da interação e, assim, negar a realidade do juízo ofensivo que ele proferiu. Ambas as estratégias são formas de resgatar a fachada, mas os custos são normalmente altos para todos os envolvidos. É em parte para prevenir tais escândalos que um ofensor normalmente oferece desculpas rapidamente; ele não quer que as pessoas afrontadas se comprometam com a obrigação de apelar a medidas desesperadas.


5. Se a Cris...

Se a Cris supusesse que nós todos somos pessoas racionais interagindo com colegas que vão trabalhar junto conosco durante anos ela teria imaginado que se eu decidi fazer coisas que estão "comprometendo a credibilidade do departamento" (01:34:57), isso provavelmente era porque eu tinha boas razões pra achar que isso era a resposta correta. Resposta correta ao quê? O mais produtivo seria a Cris tentar entender o contexto...

O início da história está no e-mail de 500 linhas, e tem links pra ele no "Vc não deu vs". A Cris disse que que tentou ler o "Vc não deu vs", mas

(01:32:33) ...que teve muita dificuldade de entender. É confuso!

Ela também disse que o meu modo de me comunicar não é "normal" (01:32:33), como se isso não fosse algo que eu soubesse muito bem... se ela tivesse me pedido rótulos eu teria dito o que eu já disse em mil situações, que é que 1) eu tenho alguns traços autistas - mas não os suficientes pra um diagnóstico de TEA - e 2) que todas as pessoas com as quais eu convivo mais se comunicam muito melhor por escrito do que por voz...

...além disso, se ela tivesse conversado mais comigo, ou lido mais dos textos que eu tenho escrito e deixado BEM VISÍVEIS, ela teria entendido o que eu acho sobre professores universitários que "não tem tempo" de ler nada e nem de abrir link nenhum - ou que acham "ler" e "links" "muito complicados".


6. Já passou

Ao invés da Cris tentar entender o contexto ela resolveu que eu estava perdendo o controle, o decoro, e a razão.

Eu fiz mil hipóteses nos dias seguintes aos da reunião. Aqui vai uma delas: a Cris acha que nada no universo é grave o suficiente pra justificar que uma pessoa levante a voz; quem levanta a voz sempre perde a razão. Além disso, "trabalhar juntos num ambiente bom" quer dizer basicamente "todo mundo usar um tom de voz tranquilo"; e se nada - exceto levantar a voz - é muito grave então os meus coleguinhas terem aberto um processo administrativo absurdo contra mim, e com isso terem gasto centenas de horas de trabalho minhas e da banca do PAD, não é grave; pode até ter sido grave, mas já passou... e se os meus coleguinhas abrirem um novo processo absurdo contra mim, também baseado em acusações falsas, depois de um tempo esse novo processo já vai ter passado também - tudo passa. E se a gente tem que ser feliz no presente e o passado sempre já passou então eu também posso passar dez anos cometendo atrocidades - mas vamos combinar: desde que elas sejam um pouquinho menores do que as dos meus coleguinhas, tá? - e aí depois eu tiro um tempinho pra descansar, faço um pós-doc, e volto bem. Quando eu voltar bem eu vou estar tranquilo e usando sempre os tons de voz certos, e aí todas as atrocidades vão ter passado, e nós vamos viver felizes e harmoniosos para sempre (de novo).

Eu entendo esse modo de pensar, mas eu não gosto dele. Eu prefiro pensar que a gente vai ser responsável por tudo que faz, e que se a gente fizer alguma merda a gente vai ter que tentar consertar ela depois. A Justiça pensa desse jeito, aliás.