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O Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas (cap. 1)
Eu poderia ter pensado que essa maneira de agir do John e da Sylvia
se relacionava apenas com as motocicletas, mas mais tarde descobri que
incluía outras coisas... Certa manhã, na cozinha deles, enquanto
esperava que se aprontassem para uma de nossas viagens, percebi que a
torneira da pia estava pingando, e me lembrei que já a vira pingando
da última vez que tinha ido lá, e que, aliás, já vinha pingando há um
bom tempo. Falei com o John, que disse ter tentado consertá-la,
trocando a arruela, sem obter qualquer resultado. E ficou nisso.
Subentendia-se que o assunto terminava ali. Se a gente tenta consertar
uma torneira, e o conserto não dá certo, é porque nosso destino é
viver de torneira quebrada.
Comecei a imaginar se eles não se incomodavam com aquele
pinga-pinga, semana após semana, ano após ano; mas como não percebi
nenhum sinal de irritação nem de preocupação, concluí que simplesmente
não se importavam com coisas como o vazamento de torneiras. Tem gente
que não se importa com isso.
Não me lembro o que me fez mudar de opinião... Alguma intuição, uma
descoberta, certo dia, talvez uma leve alteração no humor de Sylvia
quando os pingos faziam muito barulho enquanto ela tentava falar. A
voz dela é muito suave. Um belo dia, procurava elevar a voz acima do
ruído da torneira, e aí chegaram as crianças, interrompendo-a. Sylvia
descontrolou-se e gritou com as crianças. Tive a impressão de que
aquela raiva toda contra os garotos não teria sido tão grande se a
torneira não estivesse pingando enquanto ela tentava falar. Explodira
ante a combinação do ruído do vazamento com a algazarra das crianças.
O que me causou espanto na ocasião foi que ela evitou pôr a culpa na
torneira. Mas não estava ignorando aquela torneira, isso não! Estava
era reprimindo a raiva que sentia. Na verdade, aquele pinga-pinga
irritante a deixava furibunda! No entanto, por alguma razão, ela não
conseguia admitir a importância desse fato.
Por que alguém reprimiria a raiva contra uma torneira quebrada?
Senti então que aquilo combinava com a história da manutenção das
motocicletas; aí acendeu-se na minha cabeça uma daquelas
lampadazinhas, e eu exclamei: “Aaaahhhhh!”
Não se trata da manutenção das motocicletas, nem das torneiras. É a
tecnologia como um todo que eles não aceitam. Então todas as peças se
encaixaram nos seus devidos lugares, e eu entendi tudo. A irritação de
Sylvia com um amigo que achava a programação de computadores um
trabalho “criativo”. Os desenhos, pinturas e fotos sem qualquer
vestígio de tecnologia. É claro que Sylvia não ia demonstrar a raiva
que sentia da torneira, pensei. A gente sempre reprime uma raiva
momentânea contra coisas que detesta de maneira profunda e
incondicional. É claro que o John vai se esquivar sempre que surgir o
assunto do conserto das motos, mesmo que isso obviamente o faça
sofrer. É tudo tecnologia. É claro, notório, cristalino! Quando a
gente percebe, fica bem mais simples. Fugir da tecnologia para o
interior, em busca do sol e do ar fresco é a principal razão pela qual
viajam de moto. Creio que mencioná-la exatamente no lugar onde eles
pensam que finalmente escaparam da tecnologia literalmente os
paralisa. Eis porque a conversa sempre se interrompe e esfria quando
se toca no assunto.
Outras coisas também se encaixaram. De vez em quando eles falam,
com palavras sentidas, tão poucas quanto possível, sobre “isso”, ou “isso tudo que está aí”, em frases como: “A
gente simplesmente não pode escapar disso.” E se eu perguntar “de
quê”, aresposta será: “dessa coisa toda”, “dessa máquina toda”, ou
então, “do sistema”.
Sylvia certa vez se defendeu assim: “Bom, você sabe como lidar com
isso”, resposta que me deixou tão cheio de mim na época, que me senti
constrangido de perguntar o que era “isso”, permanecendo, portanto, um
pouco intrigado. Pensei que fosse algo mais misterioso do que a
tecnologia. Agora vejo, entretanto, que “isso” é principalmente, senão
inteiramente, a tecnologia. Tal resposta, porém, não me pareceu
satisfatória. “Isso” é uma espécie de força que dá origem à
tecnologia, algo indefinido, mas desumano, mecânico, sem vida, um
monstro cego, uma força mortal. Algo hediondo de que eles tentam
fugir, sabendo que é inevitável. Estou pintando o quadro com cores um
tanto sombrias, mas, de uma maneira menos enfática e definida, a
tecnologia é assim. Existem os que a compreendem e a controlam, mas
esses são tecnólogos, que descrevem suas funções numa linguagem
desumana. Ficam citando partes e relações entre elementos
desconhecidos, que nunca fazem sentido, não importa quantas vezes já
se tenha ouvido falar neles. E essas coisas, esse monstro, continuam
devorando a terra e poluindo o ar e os lagos; não há como fazê-las
recuar, nem como escapar a elas.
Não é difícil assumir tal posição. E só entrar na zona industrial
de uma cidade grande, que se poderá contemplar a tecnologia, nua e
crua, cercada por altas cercas de arame farpado, portões trancados,
avisos de ENTRADA PROIBIDA, além dos quais se divisam, envolvidas pelo
ar poluído, estranhas formas de metal e tijolos, de propósito
desconhecido, cujos donos jamais serão vistos. Não sabemos para que
servem, nem por que estão ali, e ninguém sabe informar. Portanto,
sentimo-nos alienados, exilados numa terra estranha. Aqueles que
possuem e compreendem aquelas coisas não nos querem por perto. Essa
tecnologia toda, de certo modo, faz a gente se sentir um estrangeiro
na nossa própria terra. Até a sua forma, aparência e mistério
convidam-nos a bater em retirada. Sabemos que há uma explicação em
algum lugar, e que, sem dúvida, a humanidade tira algum proveito disso
tudo, mas só vemos os cartazes PROIBIDO ENTRAR, PROPRIEDADE
PARTICULAR, e nada que sirva às pessoas; pelo contrário, vemos
pessoas, pequenas como formigas, servindo a essas formas misteriosas e
incompreensíveis. E aí a gente pensa: “Se eu fizesse parte de tudo
isso, se eu não fosse um estranho, seria apenas outra formiga servindo
a essas formas.” E assim, resta um sentimento de hostilidade, que
creio ser o que se manifesta na maneira de pensar de meus amigos; não
há outra explicação. Qualquer coisa que se relacione a válvulas, eixos
ou chaves faz parte daquele mundo desumanizado que eles querem
esquecer e do qual não querem fazer parte.
Nesse caso, eles têm companhia. Não resta dúvida de que seguiram
seus instintos naturais, não tentaram imitar ninguém. Muitos outros,
porém, também estão seguindo seus instintos naturais, sem imitar
ninguém, e os sentimentos de várias pessoas se coadunam nesse
particular, de modo que, quando observados de um ponto de vista
coletivo, como o da imprensa, parecem constituir um movimento de
massas, um movimento antitecnológico, toda uma esquerda
antitecnológica emergente, assomando sabese lá de onde, e dizendo:
“Parem com a tecnologia! Levem-na para outro lugar! Tirem-na daqui!”
Esse movimento é ainda contido por um tênue fio de lógica, a lembrança
de que sem fábricas não há empregos nem padrão de vida. Existem,
contudo, forças humanas mais fortes que a lógica; sempre existiram, e
se se tornarem mais intensas nesse ódio à tecnologia, o fio poderá
partir-se.
Inventaram e continuam a inventar clichês e estereótipos como
beatnik ou hippie para designar os antitecnólogos, os oposicionistas
do sistema. Todavia, não se transformam indivíduos em massas
simplesmente criando uma expressão massificadora. John e Sylvia não
pertencem a uma massa, assim como a maioria daqueles que seguem o
mesmo caminho. Eles parecem revoltar-se justamente contra a
massificação. E como sentem que a tecnologia tem muito a ver com as
forças que estão tentando massificá-los, não gostam disso. Até agora,
em geral, essa resistência tem sido passiva: fuga para as áreas
rurais, quando possível, e coisas parecidas. No entanto, não
precisariam ser tão passivos assim.
Não concordo com eles em relação à manutenção das motos, não porque
não simpatize com seus sentimentos a respeito da tecnologia. Acho
apenas que essa fuga e esse ódio à tecnologia são contraprodu-centes.
O Buda, a Divindade, mora tão confortavelmente nos circuitos de um
computador digital ou nas engrenagens de uma transmissão de
motocicleta quanto no pico de uma montanha ou nas pétalas de uma flor.
Pensar de outra maneira é aviltar o Buda ─ o que significa aviltar-se
a si mesmo. Eis o que desejo explicar nesta chautauqua.
Embora já não haja mais pântanos, o ar está tão úmido que a gente
pode olhar diretamente para o disco amarelo do sol, como se houvesse
fumaça ou poluição na atmosfera. Só que agora estamos atravessando
campos verdes. As casas das fazendas são limpas, brancas, diferentes.
E não há fumaça, nem poluição.
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