Falta Misandria: textos do "Sexofóbico como Resposta"Os seis textos abaixo foram escritos antes do zine Falta Misandria no Movimento Trans, pra uma
coisa/leitura/performance que iria se chamar "Sexofóbico como Resposta", mas que eu não terminei... eles
ficaram tão bons que hoje em dia eu às vezes distribuo eles
impressos, como um segundo zine menor.
1. A princesaDeixa eu usar uma imagem. A sua família se muda pra outra cidade, e você vai pra outra escola. Na sua escola antiga você era só uma criança introversiva que não se relacionava direito com ninguém. Na escola nova alguma coisa deu um clique - outra criança te perguntou alguma coisa e achou as suas respostas interessantes, e em poucos dias você estava sendo convidado pra festas - na escola antiga você era esquisito por ser totalmente incompetente pra esportes; e as festas eram só uma confusão de pessoas barulhentas sendo mais barulhentas ainda, pessoas correndo pra lá e pra cá bebendo e se sacaneando, todo mundo querendo que tudo fosse como nas festas de adolescentes dos filmes americanos - mas na escola nova ser introversivo não é pecado, você foi adotado por um grupinho que às vezes se reúne pra conversar por horas, e eles sabem que as pessoas que falam menos são as que às vezes aparecem com as melhores idéias, e conjuram as melhores imagens - Aí um dia - desculpa, tá ficando difícil escrever sem gênero, então deixa eu usar o feminino - uma das suas melhores amigas te convida pra uma festa maior, em que vai ter bem mais gente, e onde você não vai conhecer praticamente ninguém. Você acha essa amiga fascinante, ela acha você fascinante também, e ela age de forma meio protetora com você. Vocês duas entram juntas na pela porta da casa enorme cheia de gente, e naquele momento você é a amiga daquela garota, e você compartilha um pouco da aura dela, vocês são duas princesas entrando numa festa numa castelo - e a sua versão anterior, a menina tímida da outra escola, é só uma memória distante - Eu vivi muitos anos acreditando que a vida era assim: que eu iria em algum momento encontrar a festa certa, a em que as pessoas realmente interessantes estavam, e eu entraria nela como uma princesa, e tudo funcionaria... minhas qualidades, que eram algo praticamente sem valor na escola enterior, iriam brilhar como um colar de diamantes através de um vestido leve e semitransparente; eu seria adotada, e a versão anterior de mim, que vivia em humilhação e vergonha, se tornaria só uma memória distante. 2. Príncipe encantadoAlgumas pessoas detestam a expressão "príncipe encantado", porque acham que "isso não existe"... eu gosto dela. O príncipe encantado é alguém que nos salva por mágica. Tem uma frase que é: "qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível de mágica"... qualquer coisa que o príncipe encantado saiba fazer que esteja muito adiante do que as pessoas do nosso círculo sabem fazer é, num certo sentido, mágica. Se as pessoas do nosso círculo chamam o diferente de esquisito e de idiota, chamam o cara que não canta ninguém de viado e não sabem conversar, então quem nos entende e nos aceita e conversa com a gente é um príncipe encantado que nos salva "por mágica". Outra coisa legal da expressão "príncipe encantado" é a seguinte: todas as mulheres procuram um príncipe encantado. Ora, então os príncipes encantados, que devem ser muito poucos, vão ser disputados a tapa! Como fazer com que eles nos escolham? O que nós podemos fazer pra merecê-los, e como fazer com que eles nos avistem no meio da multidão?... Pior ainda: e se os príncipes encantados parecerem pessoas comuns, como nós vamos avistá-los e reconhecê-los? E se eles não estiverem prontos? Se da mesma forma que nós precisamos ser salvos eles também precisam ser salvos um pouquinho? Se eles ainda são só príncipes encantados em potencial? Se eles parecem sapos?... Como é que nós podemos virar pessoas muito interessantes e capazes de "mágica", e nos tornarmos amigos das outras pessoas interessantes e capazes de "mágica"? 3. QuerelleQuando eu tinha 14 anos abriram um cineclube perto da minha casa - o Cineclube Estação Botafogo. Eles tinham um esquema no qual a gente podia virar sócio pagando só um pouquinho por mês e aí assistir quantos filmes quisesse. Eu comecei a passar muitas tardes por semana lá. Quando eu tinha uns 15 anos eu assisti Querelle, do Fassbinder, feito em cima do livro do Jean Genet. Até aquele momento eu nunca tinha ouvido falar nem de Fassbinder, nem de Genet. Antes de falar do filme deixa eu explicar umas coisas sobre o mundo no qual eu vivia. Eu vivia num mundo incrivelmente homofóbico. "Viado" era só um xingamento - a gente não conhecia ninguém que fosse homossexual, e aliás eu tinha todos os indícios de que ninguém da minha família conhecia alguém que conhecesse alguém que conhecesse alguém que fosse homossexual - mas a gente passava o tempo todo fazendo todo o possível pra não "ser viado", porque "ser viado", mesmo que fosse durante um instante só, significava cair num abismo social sem volta, era pior do que ser um leproso e um pária, era a gente passar a merecer porrada de todo mundo a toda hora, até a gente desaparecer e apagarem todos os traços (bons) da nossa existência. Eu sabia que esse mundo super homofóbico era um mundo de mentiras e medo. A gente vivia em alerta, sempre preparado pra reagir quando a gente fosse sacaneado pelos colegas - a gente tinha que peitar na hora a pessoa que nos desafiava e dar uns motivos que mostrassem que a gente não era viado... e, bom, esses motivos eram improvisados na hora, então claro que não eram algo nem muito profundo nem muito verdadeiro... Vários traços meus eram "coisas de viado" - tipo eu ler muito, detestar atividades físicas, não gostar de ser escroto com os coleguinhas, e ficar mal quando me sacaneavam - então a minha situação era bem complicada, não "ser viado" me tomava muita energia. Mas deixa eu voltar pro filme. Todos os atores do filme são homens super musculosos, e a única personagem feminina é a Madame, a dona do bordel da cidade em que o navio do Querelle está ancorado. O Querelle, que é o personagem principal, é um marinheiro que está sempre testando sua coragem ultrapassando cada vez mais limites. Ele já vinha cometendo pequenos crimes, e ele resolve que está na hora de experimentar matar alguém pela primeira vez. Ele assalta um cara numa rua escura, mata esse cara a facadas, e logo depois resolve experimentar algo que é um tabu dez vezes maior que o assassinato. O bordel da cidade tem uma regra que todo mundo conhece. Quem quiser transar com a dona do bordel tem que jogar dados com o marido dela, que é um cara negro enorme. Se o cara ganhar nos dados ele transa com a dona do bordel, e se ele perder ele tem que dar a bunda pro marido dela. O Querelle vai no bordel, diz que quer transar com a Madame, joga dados com o marido dela, e rouba nos dados - ele roda um dos seus dados pra ele dar um valor menor, pra perder no jogo. Assistir Querelle me fez repensar toda a minha noção de coragem... e, além disso, o filme quase que dava uma fórmula, em dois passos, pra se a gente quisesse sexo homo: 1) seja incrivelmente corajoso, 2) vá pro submundo. Eu até hoje ainda não sei qual seria uma "fórmula" correspondente pra quando a gente sonha em poder deitar a cabeça no colo do nosso melhor amigo. 4. O pitbullEu estava voltando pra casa. Era um fim de tarde, hora do rush, e tanto a rua quanto a calçada estavam lotadas. Nessa época um dos assuntos mais discutidos, e que sempre aparecia nas manchetes dos jornais, era o que fazer com os pitbulls. Eles eram os cachorros preferidos dos "pitboys", que eram uns garotos ricos mimados e vândalos que viviam em academias, e que eram hipermasculinizados e que sempre que podiam se metiam em brigas. Já tinha tido uma meia dúzia de casos em que os pitbulls dos pitboys tinham atacado e mutilado, ou até matado, pessoas, e havia uma campanha em andamento pra tornar pitbulls ilegais, exigindo que eles fossem todos mortos, ou que pelo menos proibissem andar com pitbulls na rua ou tê-los em casas que tivessem crianças. Então, nesse dia eu estava voltando pra casa, andando por uma calçada hiperlotada de gente, e eu vi que ao lado de uma banca de jornais tinha um espaço praticamente vazio - e nesse espaço tinha um garoto e uma garota, de algo entre 12 e 15 anos, provavelmente irmão e irmã, conversando casualmente entre si, e entre os dois o cachorro deles: um pitbull. "Dois adolescentes com um pitbull"... nessa época isso normalmente seria algo apavorante, mas os dois tinham um ar tão frágil, eram super sensíveis, super atentos, e o cachorro deles, um pitbull só um pouquinho mais velho que um filhote, olhava pra todo mundo com uns olhões enormes, tristes, doces e carentes, e tentava exprimir, não só com os olhos mas com o corpo todo, algo como "ei, ei, por favor, por favor, vem brincar comigo, eu não vou te fazer mal nenhum!"... e umas poucas pessoas até faziam contato visual com o cachorro e olhavam ele nos olhos um instante, mas todo mundo, absolutamente todo mundo, evitava ele por medo, e então ali, no meio daquele semi-círculo colado na parede cinza de uma banca de jornais, tinha um cachorrinho doce e carente fazendo toda a força pra parecer que tinha metade do tamanho que tinha, e ele sabia que ia ter que ser o mais fofo possível pra que alguém chegasse perto, mas ainda não estava funcionando, ele teria que ser ainda muito mais doce, mais puro, mais sincero... e ele continuava tentando... Essa cena - essa imagem - nunca me abandonou. Pra mim isto é exatamente o que é ser homem - aliás, melhor, andar dentro de um corpo masculino - num país machista. A gente fala sobre privilégio masculino, mas, bom, privilégio masculino quer dizer principalmente você poder ser estúpido com as pessoas e elas sempre te desculparem - porque elas sabem que você é um animal irracional que não sabe se controlar. Existe um papo de que o que as mulheres procuram e valorizam são os homens sensíveis. Isto só é verdade até um certo ponto. Deixa eu voltar pra história do pitbull mais um pouco. A gente tem esse cachorrinho que está fazendo tudo, absolutamente tudo que pode pra merecer que algum dia um "príncipe encantado" apareça e faça carinho na cabeça dele por cinco segundos. Mas o que acontece se vários anos se passam e ninguém se aproxima? Se todo o esforço pra sinalizar pro mundo o quanto a gente quer ser fofo é em vão? A gente gastou um tempo praticamente infinito polindo nossos corações, examinando nossos pensamentos e devaneios, procurando cada coisinha que poderia parecer um gesto bruto, e tentando curar cada migalha de brutalidade por trás, e trocá-la por atenção e cuidado... Então: imagina que os anos se passam e a gente ainda é visto e tratado por absolutamente todo mundo como um pitbull. Nossa doçura e nossa esperança se desgastam, e dão lugar à amargura... e todo mundo em torno da gente diz pra gente, com as melhores intenções, coisas como: "mas você é um pitbull! Aproveite a sua pitbullzice! Se divirta..." 5. ArmaduraA coisa mais impressionante que aconteceu quando eu comecei a terapia hormonal foi quase imediata - eu tomei os remédios, fui dormir, e acordei diferente. Antes meu tórax era um bloco rígido, como uma armadura... muitos músculos meus estavam tão rígidos há décadas que eles não mandavam nenhuma informação pro meu cérebro - eles não mudavam nunca, não havia nada pra mandar. Quando eu acordei tinha, sei lá, 20, 50, 100, 200 músculos que era como se eu não tivesse antes, e que passaram a ter mobilidade e sensibilidade. Era enlouquecedor, mas era fantástico. Eu ainda estou tentando pôr direito em palavras porque é que às vezes, principalmente quando eu tinha cerca de 20 anos, eu cruzava o olhar com alguém na rua durante um ou dois segundos e o olhar dessa pessoa me salvava o dia. Olha esta idéia daqui: podia ser que eu sentisse que com aquela pessoa eu poderia tirar a armadura. Essa pessoa me dava um vislumbre, e aí eu conseguia imaginar - aliás, planejar - um futuro no qual eu não precisaria mais viver de armadura... O que aconteceria se eu afinal conseguisse me aproximar de uma pessoa dessas e me abrir com ela? Acho que eu explodiria, eu diria "obrigado" e "que alívio" e que eu procurava algo assim sem conseguir encontrar, e eu começaria a chorar - mas isso é tão perigoso, né, porque aí provavelmente a outra pessoa iria me achar um chato, dependente, descontrolado... Garimpando nos meus cadernos de anotações eu encontrei esta frase: uma armadura de espinhos que protege o meu coração. 6. O espelhoEu me perguntava a toda hora: "será que o que eu estou fazendo é de verdade?" - e com isso eu tive que procurar algum critério pro que seria "de verdade", até porque eu sempre tive uma vozinha na minha cabeça dizendo que nada do que eu fazia era verdadeiro o suficiente ou bom o suficiente, que tudo que eu fazia era ridículo, que tudo meu tinha defeitos gigantes - Agora eu acredito que a gente vive uma farsa quando a gente precisa de cada mais energia pra sustentar o que a gente acredita que é; quando os nossos pilares de sustentaçao vão ficando cada vez mais frágeis e há cada vez mais situações e memórias que a gente precisa evitar. A "verdade" seria o oposto disso: a gente está ficando mais verdadeiro quando a gente consegue se comunicar com cada vez mais gente, ouvir as pessoas melhor e pensar junto com elas, mesmo que a gente tenha mais dúvidas que certezas; e quando a gente tem acesso a cada vez mais memórias. Viver uma farsa é ter que bloquear memórias e pensamentos; ser verdadeiro é não precisar bloquear, mesmo que a gente precise às vezes atribuir significados e explicações novos para memórias antigas. Depois que eu saí do armário eu lembrei de uma memória muito forte da minha adolescência, que estava enterrada, esquecida. Teve um período de uns dois anos no qual toda vez que eu via o meu reflexo num espelho isso estragava o meu dia - então eu andava pela rua com muito cuidado com pra onde eu olhava, e eu mantinha tapado com papel pardo o espelho do meu banheiro (eu tinha um banheiro só pra mim lá na casa dos meus pais). Acho que quase todas as pessoas trans sempre se viram como alguém do gênero oposto ao sexo biológico... mas eu não sou assim, porque eu nunca me via direito - eu sempre fazia o possível pra que o meu aspecto físico fosse algo muito secundário, quase irrelevante. Agora, depois que eu comecei o tratamento hormonal, eu consigo olhar pra mim. |