A vida dos animais (J.M. Coetzee - trechos)
"Entre 1942 e 1945 muitos milhões de pessoas foram mortas nos campos de concentração do Terceiro Reich: só em Treblinka, mais de um milhão e meio, talvez até três milhões. São números que nos entorpecem a mente. Só possuímos uma única morte nossa mesmo; só podemos entender as mortes dos outros uma por vez. Teoricamente, podemos ser capazes de contar até um milhão, mas não somos capazes de contar um milhão de mortes. "As pessoas que moravam no campo em torno de Treblinka, poloneses em sua maioria, disseram que não sabiam o que acontecia no campo. Disseram que, embora pudessem imaginar, não tinham certeza. Disseram que se por um lado podiam ter sabido, por outro não sabiam, não podiam se permitir saber para se preservar. "As pessoas que viviam em torno de Treblinka não eram exceções. Havia campos em todo o Reich, quase seis mil só na Polônia, e milhares em toda a Alemanha.3 Alguns alemães viviam a poucos quilômetros de algum tipo de campo. Nem todos os campos eram campos de extermínio, campos dedicados à produção de morte, mas em todos ocorriam horrores, mais horrores do que seria possível admitir em sã consciência. "Não é por ter empreendido uma guerra expansionista, e perdido, que os alemães de uma determinada geração ainda hoje são vistos como estando um pouco à margem da humanidade, como se ainda tivessem de fazer ou ser algo especial para poderem ser readmitidos em seu seio. Aos nossos olhos eles perderam sua humanidade devido a uma certa ignorância voluntária de sua parte. Nas circunstâncias do tipo de guerra movido por Hitler, a ignorância pode ter sido um mecanismo útil de sobrevivência, mas essa é uma desculpa que, com admirável rigor moral, nos recusamos a aceitar. Na Alemanha, dizemos, se ultrapassou uma determinada linha, o que levou as pessoas para além do assassinato e da crueldade normais da guerra, conduzindo-as a um estado que só podemos chamar de pecado. A assinatura dos artigos de capitulação e o pagamento de reparações não puseram um fim ao estado de pecado. Ao contrário, se diz, uma doença da alma continuou a marcar aquela geração. Marcou aqueles cidadãos do Reich que cometeram más ações, mas também aqueles que, por qualquer razão, permaneceram na ignorância dessas ações. Marcou assim praticamente todos os cidadãos do Reich. Só os que estavam nos campos eram inocentes. "'Eles marcharam como carneiros para o matadouro.' 'Morreram como animais.' 'Foram mortos pelos açougueiros nazistas.' Nas denúncias dos campos ressoa com tamanha força a linguagem dos currais e dos matadouros que é quase desnecessário preparar o terreno para a comparação que estou prestes a fazer. O crime do Terceiro Reich, diz a voz da acusação, foi tratar as pessoas como animais. "Nós, mesmo nós na Austrália, pertencemos a uma civilização que tem profundas raízes no pensamento religioso grego e judaico-cristão. Embora nem todos acreditemos nas noções de impureza e pecado, acreditamos firmemente nos seus correlatos psíquicos. Acreditamos sem questionar que a psique (ou alma) tocada pelo sentimento de culpa não pode estar bem. Não aceitamos que as pessoas com crimes em sua consciência possam ser saudáveis e felizes. Olhamos (ou costumávamos olhar) com desconfiança para os alemães de uma certa geração, porque de algum modo estão maculados: nos próprios sinais de sua normalidade (seu apetite saudável, sua risada sonora) vemos provas de quão profundamente a impureza se insinuou no seu íntimo. "Era e é inconcebível que pessoas que não sabiam (nesse sentido especial) dos campos possam ser inteiramente humanas. Em nos metáforas, eles, e não suas vítimas, é que eram animais. Ao tratar seus semelhantes, seres humanos criados à imagem de Deus, como animais, eles próprios se transformaram em animais. "Hoje de manhã levaram-me a dar uma volta de carro por Waltham. Parece uma cidade agradável. Não vi nenhum horror, nenhum laboratório de testes de substâncias químicas, nenhuma fazenda industrial, nenhum matadouro. Porém tenho certeza que essas coisas existem aqui. Devem existir. Elas simplesmente não se mostram. Estão à nossa volta neste momento, só que, em certo sentido, não sabemos que estão ali. "Vou falar abertamente: estamos cercados por uma empresa de degradação, crueldade e morte que rivaliza com qualquer coisa que o Terceiro Reich tenha sido capaz de fazer, que na verdade supera o que ele fez, porque em nosso caso trata-se de uma empresa interminável, que se auto-reproduz, trazendo incessantemente ao mundo coelhos, ratos, aves e gado com o propósito de matá-los. "E minimizar, dizer que não há comparação, que Treblinka foi de certa maneira uma empresa metafísica dedicada a nada além da morte e da destruição enquanto a indústria da carne, em última instância, se dedica à vida (pois, afinal, não reduz suas vítimas a cinzas, já que, uma vez mortas, nem as enterra, mas, ao contrário, corta-as em pedaços, coloca-as no refrigerador e as empacota para que possam ser consumidas no conforto de nossos lares) é consolação tão pequena para as vítimas como teria sido, perdoem o mau gosto do que vou dizer, pedir aos mortos de Treblinka que desculpassem seus assassinos porque a sua gordura corporal era necessária para fazer sabão e seus cabelos para estofar colchões.4 "Perdoem-me, repito. É o último expediente barato de que vou lançar mão. Sei como esse tipo de conversa mobiliza as pessoas, provocando radicalização de posições, e que apelar para tais expedientes só piora as coisas. Quero encontrar um jeito de falar com meus semelhantes humanos que seja calmo e não inflamado, filosófico e não polêmico, que traga iluminação e não divisão entre puros e pecadores, redimidos e danados, carneiros e bodes. "Eu tenho acesso a essa linguagem, eu sei. É a linguagem de Aristóteles e Porfírio, de Agostinho e Aquino, de Descartes e Bentham, de Mary Midgley e Tom Regan em nossos dias. É uma linguagem filosófica que podemos usar para discutir e debater que tipo de alma têm os animais, se eles possuem razão ou se são, ao contrário, autômatos biológicos, se têm direitos em relação a nós ou se simplesmente temos deveres em relação a eles. Tenho acesso a essa linguagem e de fato vou recorrer a ela em alguns momentos. Mas o fato é que se vocês quisessem alguém para vir aqui lhes traçar uma distinção entre alma mortal e alma imortal ou entre direitos e deveres, teriam chamado um filósofo, não uma pessoa cuja única atividade digna de atenção é ter escrito histórias sobre pessoas inventadas. "Poderia recorrer a essa linguagem, como disse, de modo nada original, de segunda mão -- que é o melhor de que sou capaz. Poderia contar a vocês, por exemplo, o que acho da tese de santo Tomás de Aquino segundo a qual, posto que só o homem é feito à imagem de Deus e participa da essência de Deus, o modo como tratamos os animais não tem nenhuma importância salvo na medida em que ser cruel com os animais pode nos acostumar a ser cruel com os homens.5 Posso perguntar o que santo Tomás considera ser a essência de Deus, ao que ele responderá que a essência de Deus é a razão. Da mesma forma que Platão, da mesma forma que Descartes, cada um à sua maneira. O universo é construído sobre a razão. Deus é um Deus de razão. O fato de que graças à razão se possa chegar a compreender as leis que regem o universo demonstra que a razão e o universo têm a mesma essência. E o fato de que os animais, não tendo razão, não possam compreender o universo mas devam limitar-se a obedecer cegamente suas leis, demonstra que, diferentemente do homem, eles fazem parte dele mas não participam do seu ser: demonstra que o homem é como deus e os animais, como coisas. "Até Immanuel Kant, de quem eu esperava algo melhor, parece ter recuado nesse ponto. Até Kant não dá seguimento, no que se refere aos animais, às implicações de sua intuição segundo a qual a razão pode não ser o ser do universo mas, ao contrário, apenas o ser do cérebro humano. "E esse, como vocês podem ver, é o meu dilema esta tarde. A razão e sete décadas de experiência de vida me dizem que a razão não é a essência do universo, nem a essência de Deus. Ao contrário, e de forma bem questionável, a razão parece ser a essência do pensamento humano; pior ainda, a essência de apenas uma tendência do pensamento humano. A razão é a essência de um certo domínio do pensamento humano. E se assim for, se é nisso que eu acredito, então por que devo me curvar à razão esta tarde, contentando-me em bordar o discurso dos velhos filósofos? "Faço a pergunta e eu mesma respondo a vocês. Ou melhor, deixo que Pedro Rubro, o Pedro Rubro de Kafka, lhes responda. `Agora, eis-me aqui', diz Pedro Rubro, `com meu smoking, gravata-borboleta e calça preta com um buraco no traseiro para meu rabo poder sair para fora (que mantenho virado para vocês não verem), agora que estou aqui, o que tenho de fazer? Será que de fato tenho escolha? Se não sujeitar meu discurso à razão, seja lá o que for a razão, o que me resta senão falar bobagens, me emocionar, derrubar o copo de água e fazer macaquices?' "Vocês devem conhecer o caso de Srinivasa Ramanujan, nascido na Índia em 1887, capturado e transportado para Cambridge, Inglaterra, onde, incapaz de tolerar o clima, a dieta e o regime acadêmico, adoeceu, morrendo em seguida, aos trinta e três anos de idade. "Ramanujan é amplamente reconhecido como o maior matemático intuitivo de nosso tempo, o que é o mesmo que dizer que era um autodidata que pensava matematicamente, alguém para quem era estranha a idéia bastante laboriosa da prova matemática ou da demonstração. Muitos teoremas de Ramanujan (ou, conforme seus detratores, suas especulações) continuam até hoje não demonstrados, embora, quase com toda a certeza, sejam corretos. "O que nos diz o fenômeno de Ramanujan? Ramanujan estaria mais próximo de Deus porque sua mente (vamos chamar de mente: pareceria gratuitamente ofensivo chamar isso de cérebro apenas) estaria sintonizada, ou pelo menos mais sintonizada do que a de qualquer pessoa que conhecemos, com a essência da razão? Se a boa gente de Cambridge, e principalmente o professor G. H. Hardy, não tivesse arrancado de Ramanujan as suas especulações e laboriosamente demonstrado que eram verdadeiras aquelas passíveis de demonstração, ainda assim Ramanujan teria estado mais próximo de Deus do que eles? E o que teria sucedido se Ramanujan, em vez de ir para Cambridge, tivesse simplesmente ficado em casa e pensado seus pensamentos, enquanto preenchia formulários para a autoridade portuária de Madras? "E Pedro Rubro (o Pedro Rubro real, quero dizer)? Como podemos ter certeza de que Pedro Rubro ou a irmãzinha menor de Pedro Rubro, morta na África por caçadores, não estariam pensando os mesmos pensamentos que Ramanujan pensava na Índia, falando igualmente pouco? A diferença entre G. H. Hardy de um lado e o mudo Ramanujan e a muda Sally Rubra de outro residirá apenas no fato de que o primeiro está familiarizado com os protocolos da matemática acadêmica enquanto os segundos não? É assim que se mede a proximidade ou distância de Deus, a proximidade ou a distância da essência da razão? "Como é que a humanidade lança, geração após geração, um quadro de pensadores um pouco mais distantes de Deus do que Ramanujan, mas todavia capazes, depois dos protocolares doze anos de escolaridade básica e seis de instrução universitária, de dar uma contribuição para a decodificação do grande livro da natureza por intermédio das disciplinas da física e da matemática? Se a essência do homem está realmente em sintonia com a essência de Deus, não é para se desconfiar que os seres humanos levem dezoito anos, uma bela e considerável parcela da vida humana, para se qualificar como decodificadores do roteiro principal de Deus, em vez de cinco minutos ou, digamos, de quinhentos anos? Talvez o fenômeno que estamos examinando aqui, mais que o desabrochar de uma faculdade que dá acesso aos segredos do universo, seja o campo de especialização de uma tradição intelectual -- bastante limitada e que se auto-reproduz -- cujo ponto forte é o raciocínio, da mesma maneira que o ponto forte de um jogador de xadrez é jogar xadrez, uma atividade que no seu próprio interesse tenta se instalar como centro do universo?6 "Porém, embora me dê conta de que a melhor maneira de ser aceita por esta platéia cultivada seja juntar-me, como um afluente se junta a um rio maior, ao grande discurso ocidental sobre o homem versus o animal, o racional versus o irracional, algo em mim resiste, prevendo que esse passo conduzirá a uma rendição total. "Pois vista de fora, sob o prisma de um ser alheio a ela, a razão é simplesmente uma vasta tautologia. É evidente que a razão validará a razão como princípio primeiro do universo. O que mais poderia fazer? Destronar-se? Os sistemas de raciocínio, como sistemas de totalidade, não têm esse poder. Se houvesse uma posição da qual a razão pudesse atacar e destronar a si mesma, ela já teria ocupado essa posição, de outra maneira não seria total. "Nos velhos tempos, a voz do homem, elevando-se à altura da razão, confrontava-se com o rugir do leão, com o mugir do touro. O homem guerreou o leão e o touro, e, depois de muitas gerações, venceu definitivamente essa guerra. Hoje essas criaturas não têm mais poder. Aos animais só restou seu silêncio para nos confrontar. Geração após geração, heroicamente, nossos cativos se recusaram a falar conosco. Todos, menos Pedro Rubro, todos, menos os grandes macacos. "Porém, como os grandes macacos, ou alguns deles, nos parecem a ponto de desistir de seu silêncio, ouvimos vozes humanas se levantarem afirmando que os grandes macacos deveriam ser incorporados à grande família dos hominídeos, como criaturas que partilham com o homem a faculdade da razão.7 E sendo humanas -- ou humanóides -- essas vozes afirmam ainda que os grandes macacos deveriam receber direitos humanos, ou direitos humanóides. Que direitos especialmente? Pelo menos os mesmos direitos que atribuímos aos espécimes defeituosos da espécie Homo sapiens: o direito à vida, o direito a não ser sujeito a dor ou dano, o direito a igual proteção perante a lei.8 "Não era por isso que Pedro Rubro estava batalhando quando escreveu, por intermédio de seu amanuense Franz Kafka, a história que, em novembro de 1917, ele se propôs ler perante a Academia de Ciência. Fosse o que fosse, o seu relato à Academia não era um pedido para ser tratado como um ser humano mentalmente deficiente, um simplório. "Pedro Rubro não era um investigador do comportamento primata, mas um animal marcado e ferido apresentando-se como testemunha falante diante de uma platéia de acadêmicos. Não sou um filósofo da mente, mas um animal que quer mostrar, e ao mesmo tempo não o quer, perante uma platéia de acadêmicos, uma ferida que oculto sob minhas roupas, mas que toco a cada palavra que pronuncio. "Se Pedro Rubro tomou para si realizar a árdua descida do silêncio dos animais para a tagarelice da razão com o espírito do bode expiatório, do escolhido, o seu amanuense era um bode expiatório de nascença, com um pressentimento, um Vorgefühl, do massacre do povo escolhido que iria ter lugar tão imediatamente após sua morte. Permitam-me, portanto, demonstrar minha boa vontade, apresentar minhas credenciais, fazendo um gesto na direção do academicismo ao brindá-los com minhas especulações acadêmicas, apoiadas em notas de rodapé" -- nesse momento, num gesto nem um pouco característico de sua mãe, ela ergue o texto da palestra e o brande no ar -- `sobre as origens de Pedro Rubro'. "Em 1912, a Academia Prussiana de Ciências fundou, na ilha de Tenerife, uma estação dedicada à experimentação da capacidade mental dos macacos, principalmente dos chimpanzés. A estação funcionou até 1920. "Um dos cientistas que trabalhava lá era o psicólogo Wolfgang Köhler. Em 1917, Köhler publicou uma monografia intitulada A mentalidade dos macacos, descrevendo seus experimentos. Em novembro do mesmo ano, Franz Kafka publicou `Um relato a uma academia'. Não sei se Kafka leu o livro de Köhler. Ele não faz nenhuma referência a isso em suas cartas e diários, e sua biblioteca desapareceu durante a era nazista. Em 1982, cerca de duzentos livros seus reapareceram. O livro de Köhler não estava entre eles, mas isso não prova nada.9 "Não sou doutora em Kafka. Na verdade, não sou doutora em nada. Minha posição no mundo não depende de eu estar certa ou errada em relação à suposição de que Kafka leu o livro de Köhler. Mas eu prefiro acreditar que leu, e a cronologia torna minha especulação ao menos plausível. "De acordo com seu próprio relato, Pedro Rubro foi capturado no continente africano por caçadores especializados no comércio de macacos, e despachado para um instituto científico ultramarino. Eram esses os macacos com que Köhler trabalhava. Tanto Pedro Rubro como os macacos de Köhler passavam por um período de treinamento destinado a humanizá-los. Pedro Rubro foi aprovado com louvor em seu curso, embora tenha pagado um alto preço por ele. A história de Kafka trata disso: ficamos sabendo no que consiste esse preço por meio das ironias e silêncios da história. Os macacos de Köhler não se saíram tão bem. Mesmo assim, adquiriram pelo menos um arremedo de educação. "Permitam que lhes relate o que alguns dos macacos de Tenerife aprendiam com seu mestre Wolfgang Köhler, particularmente Sultão, o melhor de seus alunos, em certo sentido um protótipo de Pedro Rubro. "Sultão está sozinho em seu cercado. Está com fome: a comida, que costumava chegar com regularidade, inexplicavelmente deixou de vir. "O homem que costumava alimentá-lo, e que agora parou de fazê-lo, estica um fio três metros acima do chão de seu cercado e nele pendura uma penca de bananas. Arrasta para dentro do cercado três caixotes de madeira. Depois desaparece, fechando o portão, mas permanecendo nas proximidades, pois é possível sentir seu cheiro. "Sultão sabe: agora é preciso pensar. Por isso as bananas estão ali no alto. As bananas estão ali para fazer pensar, para empurrar o sujeito até os limites do pensamento. Mas o que se deve pensar? Algo como: por que ele está me deixando passar fome? Ou: o que foi que eu fiz? Por que ele parou de gostar de mim? Ou ainda: por que ele não quer mais estes caixotes? Mas nenhum desses é o pensamento correto. Até um pensamento mais complicado -- por exemplo: qual é o problema dele, que conceito errado ele faz de mim que o leva a acreditar que é mais fácil para mim chegar até uma penca de bananas pendurada num fio do que pegar as bananas do chão? --, até isso está errado. O pensamento certo é: como usar os caixotes para chegar às bananas? "Sultão arrasta os caixotes até posicioná-los sob as bananas, empilha um em cima do outro, sobe na torre que construiu e pega as bananas. Pensa: será que agora ele vai parar de me castigar? "A resposta é: não. No dia seguinte, o homem pendura outra penca de bananas no fio, mas também enche os caixotes de pedras, de forma que fiquem pesados demais para arrastar. O que se deve pensar não é: por que ele encheu os caixotes de pedras? O que se tem de pensar é: como se faz para usar os caixotes para pegar as bananas, apesar de estarem cheios de pedras? "Dá para começar a entender como funciona a cabeça do homem. "Sultão remove as pedras de dentro dos caixotes, constrói uma torre com os caixotes, sobe na torre, pega as bananas. "Enquanto Sultão continuar tendo os pensamentos errados, passará fome. Até a sua fome ser tão intensa, tão avassaladora, que ele se veja forçado a ter o pensamento correto, isto é, como conseguir pegar as bananas. Assim são testadas até o limite as capacidades do chimpanzé. "O homem põe uma penca de bananas um metro para fora da malha de arame do cercado. Joga uma vara para dentro do cercado. O pensamento errado é: por que ele parou de pendurar as bananas no fio? O pensamento errado (o pensamento errado-correto, todavia) é: como usar os três caixotes para pegar as bananas? O pensamento correto é: como usar a vara para pegar as bananas? "A cada vez, Sultão é levado a ter o pensamento menos interessante. Da pureza da especulação -- por que os homens se comportam assim? -- ele é impiedosamente impelido ao raciocínio mais baixo, prático, instrumental -- como usar isto para conseguir aquilo? -- e assim à aceitação de si mesmo primordialmente como um organismo com um apetite a ser satisfeito. Embora toda a sua história, desde o momento em que sua mãe foi morta e ele foi capturado, passando pela viagem numa jaula até a prisão nesse campo, dessa ilha, e os jogos sádicos que ali se realizam com a comida, tudo o leva a questionar a justiça do universo e o lugar que nele ocupa essa colônia penal, na qual um regime psicológico cuidadosamente planejado o leva para longe da ética e da metafísica em direção ao humilde domínio da razão prática. E de alguma forma, ao palmilhar esse labirinto de constrangimento, manipulação e duplicidade, ele tem de entender que de jeito nenhum pode ousar desistir, porque em seus ombros repousa a responsabilidade de representar a essência macacal. O destino de seus irmãos e irmãs pode ser determinado pelos resultados que ele obtiver. "Wolfgang Köhler provavelmente era um bom homem. Um bom homem, mas não um poeta. Um poeta teria entendido alguma coisa ao ver os chimpanzés cativos girando em círculo no recinto, em tudo semelhantes a uma banda militar, alguns nus como no dia em que nasceram, outros cobertos por cordas ou velhas tiras de pano que acharam por ali, como se estivessem vestidos com esses trapos, outros ainda carregando pedaços de qualquer coisa. "(No exemplar do livro de Köhler que li, retirado de uma biblioteca, algum leitor indignado havia anotado à margem, neste ponto: `Antropomorfismo!'. Animais não sabem marchar, ele queria dizer, não sabem se vestir, porque não conhecem o significado de marchar, não conhecem o significado de vestir-se.) "Nada em suas vidas pregressas acostumou esses macacos a olhar para si mesmos de fora, como se pelos olhos de alguém que não existe. Na percepção de Köhler, as fitas e os objetos não estão ali para que obtenham um efeito visual, porque fazem-nos parecer elegantes, mas sim para que obtenham um efeito cinético, porque os fazem sentir-se diferentes -- qualquer coisa para aliviar o tédio. Apesar de toda a sua simpatia e capacidade de compreensão, Köhler só consegue chegar até esse ponto -- ponto do qual um poeta poderia começar, partindo de algum sentimento de compaixão pela experiência do macaco. "No seu ser mais profundo, Sultão não está interessado no problema da banana. Só a mente do experimentador, obsessivamente voltada para o problema, é que o força a se concentrar nele. A questão que realmente o ocupa, como ocupa o rato e o gato e qualquer outro animal aprisionado no inferno de um laboratório ou de um zoológico é a seguinte: onde está a minha casa e como chego lá? "Calculem a distância entre o macaco de Kafka -- com sua gravata-borboleta, smoking e o bloco de notas da palestra -- e aquele triste bando de cativos marchando no pátio de Tenerife. Quanto viajou Pedro Rubro! No entanto, podemos perguntar: a que ele teve de renunciar em troca do prodigioso superdesenvolvimento do intelecto que obteve, em troca de seu domínio da etiqueta dos salões de conferências e da retórica acadêmica? A resposta é: a muito, inclusive à prole, à sucessão. Se Pedro Rubro tivesse algum juízo, ele não teria filhos. Pois com a desesperada, quase louca fêmea, com que seus captores, na história de Kafka, o forçam a cruzar, ele só poderá gerar um monstro. É tão difícil imaginar o filho de Pedro Rubro como imaginar o filho do próprio Franz Kafka. Híbridos são, ou deveriam ser, estéreis; e Kafka considerava tanto a si mesmo como a Pedro Rubro como híbridos, como monstruosos engenhos pensantes inexplicavelmente acoplados a sofredores corpos animais. O olhar que vemos em todas as fotos que restaram de Kafka é um olhar de pura surpresa: surpresa, perplexidade, alarme. De todos os homens, Kafka é o mais inseguro de sua humanidade. Isto, ele parece dizer: isto é a imagem de Deus?" "Ela está divagando", diz Norma ao lado dele. "O quê?" "Está divagando. Perdeu o rumo." "Há um filósofo americano chamado Thomas Nagel", continua Elizabeth Costello, que não ouviu a observação de sua nora. "Ele é provavelmente mais conhecido de vocês do que de mim. Alguns anos atrás, escreveu um ensaio chamado `Como é ser um morcego?', que um amigo sugeriu que eu lesse. "Nagel me parece um homem inteligente e não desprovido de compaixão. Ele tem até certo senso de humor. Sua pergunta sobre o morcego é interessante, mas sua resposta é tragicamente limitada. Permitam que eu leia uma parte do que ele diz em resposta à sua pergunta:
"Para Nagel, um morcego é `uma forma de vida fundamentalmente alienígena' (p. 168), não tão alienígena quanto um marciano (p. 170), mas menos alienígena que outro ser humano (particularmente, como se pode imaginar, se esse ser humano for um filósofo, colega de academia). "Estabelecemos, portanto, um continuum que vai do marciano em uma ponta até o morcego, o cão, o macaco (não Pedro Rubro, porém) e o ser humano (não Franz Kafka, porém) na outra; e a cada passo, à medida que nos deslocamos nesse continuum que vai do morcego ao homem, diz Nagel, vai ficando mais fácil dar a resposta à pergunta: `Como é ser X para X?'. "Sei que Nagel está se valendo de morcegos e marcianos apenas como elementos de apoio, que lhe permitam colocar suas próprias questões sobre a natureza da consciência. Mas, como ocorre com a maioria dos escritores, minha cabeça tende a ser literal, de forma que gostaria de não prosseguir com o morcego. Quando Kafka escreve sobre um macaco, considero que ele está falando primordialmente sobre um macaco; quando Nagel escreve sobre um morcego, considero que está escrevendo primordialmente sobre um morcego." Sentada ao lado dele, Norma dá um suspiro de exasperação tão leve que só ele escuta. E era mesmo destinado apenas a ele. "Durante alguns minutos, às vezes", sua mãe estava dizendo, "sei como é ser um cadáver. Esse conhecimento me repele. Me enche de terror; eu fujo disso, me recuso a considerar isso. "Todos nós temos esses momentos, principalmente quando ficamos mais velhos. O conhecimento que temos não é abstrato -- `Todos os seres humanos são mortais, eu sou um ser humano, portanto sou mortal' --, mas corpóreo. Por um momento, nós somos esse conhecimento. Vivemos o impossível: vivemos além da nossa morte, olhamos para trás, mas olhamos para trás como só um morto é capaz. "Quando sei, graças a esse conhecimento, que vou morrer, o que é, nos termos de Nagel, que eu sei? Sei o que é para mim ser cadáver ou sei para o cadáver o que é ser cadáver? A distinção me parece sem importância. O que eu sei é o que um cadáver não pode saber: que está extinto, que não sabe nada e que nunca mais saberá mais nada. Por um instante, antes de toda a minha estrutura de conhecimento entrar em colapso por pânico, estou viva dentro dessa contradição, morta e viva ao mesmo tempo." Norma bufa um pouco. Ele procura a mão dela e aperta. "Esse é o tipo de pensamento de que somos capazes, nós, seres humanos, disso e de ainda mais, se nos esforçamos para pensar ou somos obrigados a pensar. Mas resistimos à coação, e raramente nos esforçamos. Só pensamos na morte quando damos de cara com ela. Pergunto agora: se somos capazes de pensar nossa própria morte, por que diabos não somos capazes de pensar a vida de um morcego? "Como é ser morcego? Nagel sugere que antes de podermos responder a essa pergunta, precisamos ser capazes de experimentar a vida do morcego por meio das modalidades sensoriais de um morcego. Mas ele está errado; ou pelo menos está nos colocando na trilha errada. Ser um morcego vivo é estar cheio de ser. Ser plenamente morcego é igual a ser plenamente humano, o que quer dizer também estar cheio de ser. Ser morcego no primeiro caso, ser humano no segundo, talvez, mas essas considerações são secundárias. Estar cheio de ser é viver como corpo-alma. Nosso nome para a experiência de ser pleno é alegria. "Estar vivo é ser uma alma viva. Um animal -- e somos todos animais -- é uma alma inserida num corpo. Foi precisamente isso que Descartes enxergou e, por razões pessoais, escolheu negar. O animal vive, disse Descartes, da mesma forma que a máquina vive. O animal não é nada além do mecanismo que o constitui. Se tem uma alma, a tem da mesma maneira que a máquina dispõe de uma bateria, para lhe fornecer a faísca que a faz funcionar. Mas o animal não é uma alma inserida num corpo, e a qualidade de seu ser não é a alegria. "Cogito ergo sum é também uma famosa frase sua. É uma fórmula que sempre me incomodou. Pressupõe que um ser vivo que não faz o que ele chama de pensar é, de alguma forma, um ser de segunda classe. Ao ato de pensar, à cogitação, oponho a plenitude, a corporalidade, a sensação de ser -- não uma consciência de si mesmo como uma espécie de fantasmagórica máquina raciocinante pensando pensamentos, mas, ao contrário, a sensação -- uma sensação pesadamente afetiva -- de ser um corpo com membros que têm uma extensão no espaço, de se estar vivo no mundo. Essa plenitude contrasta em tudo com o estado fundamental de Descartes, que traz em si uma sensação de vazio: a sensação de uma ervilha chacoalhando dentro de uma vagem. "A plenitude de ser é um estado difícil de sustentar em confinamento. Confinamento a uma prisão é uma forma de punição que o Ocidente privilegia e faz todo o possível para impor ao resto do mundo por meio da condenação de outras formas de punição (espancamento, tortura, mutilação, execução) consideradas cruéis e antinaturais. O que isso nos sugere a respeito de nós mesmos? A mim isso sugere que a liberdade de o corpo mover-se no espaço é tomada como o ponto em que a razão pode mais dolorosa e eficientemente ferir o ser do outro. E de fato é nas criaturas menos aptas a suportar o confinamento -- as criaturas que menos se encaixam no quadro de Descartes da ervilha dentro da vagem, para as quais o confinamento é irrelevante -- que observamos os efeitos mais devastadores: nos zoológicos, nos laboratórios, nas instituições onde o fluxo da alegria, que vem não do estar em um corpo ou existir como um corpo, mas simplesmente do ser um ser encarnado em um corpo, não tem lugar.11 "A pergunta a ser feita não deveria ser: temos algo em comum -- razão, autoconsciência, alma -- com os outros animais? (E o corolário que se segue é que, se não tivermos, estamos autorizados a tratá-los como quisermos, aprisionando-os, matando-os, desrespeitando seus cadáveres.) Volto aos campos de extermínio. O horror específico dos campos, o horror que nos convence de que aquilo que aconteceu ali foi um crime contra a humanidade, não reside no fato de que a despeito de os matadores partilharem com suas vítimas a condição de humanos, eles as terem tratado como piolhos. Isso é abstrato demais. O horror está no fato de os matadores terem recusado a se imaginar no lugar de suas vítimas, assim como todo mundo. Disseram: `São eles naqueles vagões de gado passando'. Não disseram: `Como seria para mim estar naquele vagão de gado?'. Disseram: `Devem ser os mortos que estão sendo queimados hoje, pesteando o ar e caindo em forma de cinza em cima dos meus repolhos'. Não disseram: `Como seria se eu estivesse queimando?'. Não disseram: `Estou queimando, estou me transformando em cinzas'. "Em outras palavras, eles fecharam seus corações. O coração é sítio de uma faculdade, a simpatia, que, às vezes, nos permite partilhar o ser do outro. A simpatia tem tudo a ver com o sujeito e pouco a ver com o objeto, o `outro', como percebemos de imediato quando pensamos no objeto não como um morcego (`Posso partilhar o ser de um morcego?'), mas como outro ser humano. Certas pessoas têm a capacidade de se imaginar como outra pessoa, há pessoas que não têm essa capacidade (quando essa falta é extrema, chamamos essas pessoas de psicopatas), e há pessoas que têm a capacidade, mas escolhem não exercê- la. "Apesar de Thomas Nagel, que provavelmente é um bom homem, apesar de Tomás de Aquino e de René Descartes, com os quais tenho maior dificuldade de simpatizar, não há limite para a nossa capacidade de perceber pelo pensamento o ser de outrem. Não há limites para a imaginação simpatizante. Se querem uma prova, pensem no seguinte. Alguns anos atrás, escrevi um livro chamado A casa da rua Eccles. Para escrever esse livro, tive de penetrar com o pensamento na existência de Marion Bloom. Não sei se consegui ou não. Mas se não consegui, não vejo por que me convidaram para vir hoje aqui. De qualquer forma, a questão é a seguinte: Marion Bloom nunca existiu. Marion Bloom é uma criatura da imaginação de James Joyce. Se sou capaz de pensar a existência de um ser que nunca existiu, sou capaz de pensar a existência de um morcego ou de um chimpanzé ou de uma ostra, de qualquer ser que participe comigo do substrato da vida. "Volto uma última vez aos locais de morte que estão à nossa volta, aos locais de abate para os quais, em um imenso esforço comum, fechamos nossos corações. Ocorre a cada dia um novo Holocausto e, no entanto, até onde posso enxergar, nosso ser moral permanece intocado. Isso não nos afeta. Ao que parece, podemos fazer qualquer coisa e sair limpos. "Apontamos o dedo para os alemães, poloneses e ucranianos que sabiam e não sabiam das atrocidades cometidas à sua volta. Gostamos de pensar que ficaram internamente marcados pelos efeitos daquela forma especial de ignorância. Gostamos de pensar que, em seus pesadelos, aqueles cujo sofrimento se recusaram a registrar voltam para assombrá-los. Gostamos de pensar que eles acordavam exaustos de manhã e morriam de cânceres terríveis. Mas provavelmente não foi assim. As evidências apontam para a direção contrária: que podemos fazer tudo e escapar ilesos; que não existe castigo." 3 Daniel J. Goldhagen, Hitler's Willing Executioners, Londres, Little Brows, 1996, p.171 (publicado em 1997 pela Companhia das Letras sob o título Os carrascos voluntários de Hitler).
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