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1 

SEXO E VIOLÊNCIA, OU NATUREZA E ARTE 

No princípio, era a natureza. Pano de fundo a partir do qual e contra
o qual se formaram nossas idéias a respeito de Deus, a natureza
continua sendo o supremo problema moral. Não podemos esperar entender
o sexo e as identidades sexuais humanas enquanto não esclarecermos
nossa atitude em relação a ela. O sexo é um subconjunto da natureza.
Sexo é o natural no homem.

A sociedade é uma construção artificial, uma defesa contra o poder da
natureza. Sem sociedade, estaríamos sendo jogados de um lado para
outro nas tempestades do mar da barbárie que é a natureza. Podemos
alterar essas formas, lenta ou subitamente, mas nenhuma transformação
na sociedade vai mudar a natureza. Somos apenas uma dentre a multidão
de espécies sobre as quais a natureza exerce indiscriminadamente sua
força. A natureza tem um programa mestre que mal podemos conhecer.

A vida humana teve início na fuga e no medo. A religião surgiu de
rituais de propiciação, sortilégios para aplacar a violência dos
elementos. Até hoje, são poucas as comunidades nas regiões crestadas
pelo calor ou agrilhoadas pelo gelo. O homem civilizado esconde de si
mesmo a extensão de sua subordinação à natureza. A grandiosidade da
cultura, a consolação da religião absorvem suas atenções e conquistam
sua fé. Mas, basta a natureza dar de ombros e tudo cai em ruínas.
Incêndios, inundações, raios, tufões, furacões, vulcões, terremotos -
em qualquer parte, a qualquer hora. A tragédia abate-se sobre os bons
e os maus. A vida civilizada exige um estado de ilusão. A idéia da
benevolência última da natureza e de Deus é o mais poderoso dos
mecanismos de sobrevivência do homem. Sem ela, a cultura reverteria ao
medo e ao desespero.

Sexualidade e erotismo formam a complexa intersecção de natureza e
cultura. As feministas supersimplificam grosseiramente o problema do
sexo quando o reduzem a uma questão de convenção social: é só
reordenar a sociedade, eliminar a desigualdade sexual, purificar os
papéis sexuais, que reinarão a felicidade e a harmonia. Neste ponto o
feminismo, como todos os movimentos sociais dos últimos duzentos anos,
é herdeiro de Ronsseau. O _contrato social_ (1762) começa dizendo: "O
homem nasce livre, e por toda parte está acorrentado".

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%
Colocando a benigna natureza romântica contra a sociedade corrupta,
Rousseau produziu a linha progressivista na cultura do século XIX,
para a qual a reforma social era o meio de alcançar o Paraíso na
terra. A bolha dessas esperanças foi estourada pelas catástrofes de
duas guerras mundiais. Mas o rousseauísmo tornou a renascer na geração
do pós-guerra dos anos 60, da qual se desenvolveu o feminismo
contemporâneo.

Rousseau rejeita o pecado original, a visão pessimista do cristianismo
de que o homem nasce impuro, com uma tendência para o mal. A idéia de
Rousseau, que deriva de Locke, da bondade inata do homem levou ao
ambientalismo social, hoje a ética dominante nos serviços sociais,
códigos penais e terapias behavioristas americanos. Pressupõe que a
agressão, a violência e o crime resultam da privação social - um
bairro pobre, um lar ruim. Assim, o feminismo culpa a pornografia pelo
estupro, e, por um raciocínio presunçosamente circular, interpreta os
surtos de sadismo como uma reação violenta contra o próprio feminismo.
Mas estupro e sadisrno têm estado presentes em toda a história, e, em
certos momentos, em todas as culturas.

Este livro adota a opinião de Sade, o menos lido dos grandes
escritores da literatura ocidental. Sua obra é uma abrangente crítica
satirica a Rousseau, escrita na década seguinte à primeira experiência
rousseauísta fracassada, a Revolução Francesa, que terminou não em
paraíso político, mas no inferno do Reinado do Terror. Sade segue
Hobbes e não Locke. A agressão vem da natureza; é o que Nietzsche
chamará de vontade de poder. Para Sade, voltar à natureza (o
imperativo romântico que ainda impregna nossa cultura, dos
conselheiros sexuais aos comerciais de cereais) era dar rédea solta à
violência e ao desejo. Eu concordo. A sociedade não é a criminosa, mas
a força que contém o crime. Quando os controles sociais enfraquecem, a
crueldade inata do homem vem à tona. O estuprador não é criado por más
influências sociais, mas por uma falha de condicionamento social. As
feministas, buscando eliminar do sexo as relações de poder,
colocaram-se contra a própria natureza. Sexo _é_ poder. Identidade é
poder. Na cultura ocidental, não há relações que não sejam de
exploração. Todos matam para viver. A lei natural e universal de
criação a partir da destruição opera tanto na mente como na matéria.
Como afirma Freud, herdeiro de Nietzsche, identidade é conflito. Cada
geração passa seu arado sobre os ossos dos mortos.

O liberalismo moderno sofre de contradições não resolvidas. Exalta o
individualismo e a liberdade, e sua ala radical condena as ordens
sociais como opressivas. Por outro lado, espera que o governo seja o
provedor material de todos, um feito só alcançável mediante a expansão
da autoridade de uma burocracia inchada. Em outras palavras, o
liberalismo define o governo como um pai tirano, mas exige que ele aja
como uma mãe que amamenta. O feminismo herdou essas contradições.
Encara toda hierarquia como repressiva, uma ficção social; todo
aspecto negativo na mulher é uma mentira masculina, destinada a
mantê-la em seu lugar. O feminismo excedeu sua missão, a busca de
igualdade política para as mulheres, e acabou rejeitando a
contingência, ou seja, a limitação humana pela natureza ou pelo
destino.

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Liberdade sexual, liberação sexual. Uma ilusão moderna. Somos animais
hierárquicos. É só varrer uma hierarquia, que outra tomará seu lugar,
talvez menos palatável que a primeira. Há hierarquias na natureza e
hierarquias alternativas na sociedade. Na natureza, a força bruta é a
lei, a sobrevivência do mais capaz. Na sociedade, existem proteções
para os fracos. A sociedade é nossa frágil barreira contra a natureza.
Quando o prestígio do Estado e da religião anda baixo, os homens são
livres, mas acham a liberdade intolerável e buscam novos meios de
escravizar-se, por meio das drogas ou da depressão. Minha teoria é
que, sempre que se busca ou se alcança a liberdade sexual, o
sadomasoquismo não vem muito atras. O romantismo sempre se transforma
em decadência. A natureza é um duro capataz. É o martelo e a bigorna,
esmagando a individualidade. A liberdade perfeita seria morrer por
terra, ar, água e fogo.

O sexo é um poder muito mais sombrio do que admite o feminismo. As
terapias sexuais behavioristas julgam possível o sexo sem culpa,
impecável. Mas o sexo sempre foi cercado de tabu, independentemente de
cultura. O sexo é o ponto de contato entre o homem e a natureza, onde
a moralidade e as boas intenções caem diante de impulsos primitivos.
Chamei esse ponto de intersecção. Essa intersecção é a misteriosa
encruzilhada de Hecate, onde tudo retorna à noite. O erotismo é um
reino tocaiado por fantasmas. É o lugar além dos confins, ao mesmo
tempo amaldiçoado e encantado.

Este livro mostra quanta coisa, na cultura, vai contra o que mais
gostaríamos. A integração de corpo e mente humanos é um problema
profundo, que não será resolvido com sexo recreativo nem com uma
expansão dos direitos civis femininos. A encarnação, limitação da
mente pela matéria, é um ultraje à imaginação. Igualmente ultrajante é
o sexo, que não escolhemos, mas que a natureza nos impôs. Nossa
fisicalidade é um tormento, nosso corpo a árvore da natureza na qual
Blake nos vê crucificados.

O sexo é _daimônico_. Este termo, corrente nos estudos sobre o
romantismo realizados nos últimos 25 anos, vem do grego _daimon_, que
significa um espírito de divindade inferior à dos deuses do Olimpo
(daí minha pronúncia "daimônico"). Édipo, expulso, torna-se um
_daimon_ em Colona. A palavra passou a significar a sombra guardiã do
homem. O cristianismo transformou daimônico em demoníaco. Os _daimons_
gregos não eram maus - ou melhor, eram ao mesmo tempo bons e maus,
como a própria natureza, na qual viviam. O inconsciente de Freud é um
domínio daimônico. De dia, somos criaturas sociais, mas à noite
mergulhamos no mundo dos sonhos, onde reina a natureza, onde não
existe lei mas apenas sexo, crueldade e metamorfose. O próprio dia é
invadido pela noite daimônica. De instante a instante, a noite pisca
na imaginação, no erotismo, subvertendo nossas tentativas de virtude e
ordem, dando a objetos e pessoas uma aura misteriosa, que nos é
revelada pelos olhos do artista.

O caráter espectral do sexo está implícito na brilhante teoria do
"romance familiar" de Freud. Todos temos uma constelação incestuosa de
personas sexuais, que levamos do berço à cova, e que determina a quem
e como amamos ou odiamos. Todo encontro com amigo ou inimigo, todo
choque com a autori-

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dade ou submissão a ela traz os traços perversos do romance familiar.
O amor é um teatro lotado, pois, como observa Harold Bloom: "Não
podemos abraçar (sexualmente ou de outro modo) uma pessoa, sem abraçar
todo o seu romance familiar".\footnote{1} Quase nada conhecemos ainda
do mistério da _cathexis_, o investimento de libido em certas pessoas
ou coisas. O elemento de livre-arbítrio no sexo ou na emoção é
pequeno. Como sabem os poetas, a paixão é irracional.

Como a arte, o sexo está cheio de símbolos. Romance familiar significa
que o sexo adulto é sempre uma representação, uma atuação ritualística
derivada de realidades passadas. Um erotismo inteiramente humanitário
talvez seja impossível. Em algum ponto de todo romance familiar há
hostilidade e agressão, os desejos homicidas do inconsciente. As
crianças são monstros de desenfreado egoísmo e vontade porque vêm
diretamente da natureza, hostis sugestões de imoralidade. Carregamos
essa vontade daimônica conoseo para sempre. A maioria das pessoas a
esconde com preceitos éticos adquiridos, e só a enfrenta nos sonhos,
que logo esquece ao acordar. A vontade de poder é inata, mas os
roteiros do romance familiar são aprendidos. Os seres humanos são as
únicas criaturas nas quais a consciência está tão enredada com o
instinto animal. Na cultura ocidental, jamais pode haver um encontro
puramente físico ou despido de ansiedade. Toda atração, todo esquema
de contato, todo orgasmo é modelado por sombras psíquicas.

A busca de liberdade por meio do sexo está condenada ao fracasso. No
sexo, dominam a compulsão e a velha Necessidade. As personas sexuais
do romance familiar são apagadas pela força maremótica da regressão, o
movimento para trás, para a dissolução primeva, que Ferenczi
identifica com o oceano. Todo orgasmo é um domínio, uma rendição, ou
uma inovação. A natureza não tem nenhum respeito pela identidade
humana. Por isso tantos homens se viram para o lado ou fogem depois do
sexo, porque sentiram a aniquilação do daimônico. O amor ocidental é
um deslocamento de realidades cósmicas. É um mecanismo de defesa que
racionaliza forças desgovernadas e ingovernáveis. Como a religião
primitiva, é um artifício que nos possibilita controlar nosso medo
primitivo.

Não se pode entender o sexo, porque não se pode entender a natureza. A
ciência é um método de análise lógica das operações da natureza.
Aliviou a ansiedade humana em relação ao cosmos, demonstrando a
materialidade das forças da natureza, e sua freqüente previsibilidade.
Mas a ciência vive correndo atrás da bola. A natureza viola suas
próprias regras sempre que quer. A ciência não pode evitar um único
raio. A ciência ocidental é produto da mente apolínea: espera que,
pela denominação e classificação, pela fria luz do intelecto, a noite
arcaica seja repelida e derrotada.

Nome e pessoa fazem parte da busca de forma do Ocidente, que insiste
na identidade distinta dos objetos. Denominar é conhecer; conhecer ê
controlar. Pretendo demonstrar que a grandeza do Ocidente vem dessa
certeza ilusória. A cultura do Extremo Oriente jamais lutou assim
contra a natureza. A submissão, e não o confronto, é a regra. A
meditação budista busca a unidade e

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% (find-personassexuais1page (+ -12 17))
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harmonia da realidade. A física do século XX, fechando o círculo de
volta a Heráclito, postula que toda matéria está em movimento. Em
outras palavras, não existem coisas, só energia. Mas essa percepção
não foi absorvida pela imaginação, pois anula as crenças intelectuais
e morais do Ocidente.

O ocidental conhece por meio do olhar. As relações perceptivas estão
no âmago de nossa cultura, e produziram nossas titânicas contribuições
à arte. Caminhando em meio à natureza, vemos, identificamos, nomeamos,
_reconhecemos_. Esse reconhecimento é nosso _apotropaion_, ou seja,
nosso isolamento do medo. O reconhecimento é cognoscência ritual, uma
compulsão de repetição. Dizemos que a natureza é bela. Mas esse
julgamento estético, que nem todos os povos têm partilhado, é outra
formação de defesa, desgraçadamente inadequada para abranger a
totalidade da natureza. O que é bonito na natureza se limita à fina
película do globo sobre o qual nos amontoamos. É só arranhar essa
película, que surgirá a feiúra daimônica da natureza.

Nossa concentração no belo é uma estratégia apolínea. As folhas e
flores, os pássaros, as montanhas são um desenho à la colcha de
retalho pelo qual mapeamos o conhecido. O que o Ocidente reprime em
sua visão da natureza é o _ctônio_, que significa "da terra" - mas das
entranhas da terra, não da superfície. Jane Harrison usa o termo para
a religião pré-olímpica grega, e eu o adoto como um substituto para
_dionisíaco_, que se contaminou com gracejos vulgares. O dionisíaco
não é nenhum piquenique. São as realidades crônicas de que foge Apolo,
o triturar cego da força subterrânea, o longo e lento sugar, a treva e
a lama. É a desumanizante brutalidade da biologia e da geologia, o
desperdício e derramamento de sangue darwinianos, a miséria e podridão
que temos de barrar da consciência, a fim de manter nossa integridade
apolínea como pessoas. A ciência e a estética ocidentais são
tentativas de revisar esse horror dando-lhe uma forma mais palatãvel
para a imaginação.

O daimonismo da natureza ctônica é 0 segredo indecente do Ocidente. Os
humanistas modernos fizeram do "sentido trágico da vida" a pedra
angular da compreensão madura. Definiram a mortalidade humana e a
transitoriedade do tempo como temas supremos da literatura. Também
nisso vemos, outra vez, fuga, e até mesmo sentimentalismo. O
sentimento trágico da vida é uma resposta parcial à experiência. É um
reflexo da resistência do Ocidente à natureza, e da falsa impressão
que tem dela, combinadas com os erros do liberalismo, que em sua
romântica filosofia da natureza tem seguido mais o rousseauísta
Wordsworth do que o daimônico Coleridge.

A tragédia é o mais ocidental dos gêneros literários. Só apareceu no
Japão no final do século XIX. A vontade ocidental, insurgindo-se
contra a natureza, dramatizou sua própria e inevitável queda como um
componente humano universal, o que ela não é. Uma das ironias da
história literária é o nascimento da tragédia no culto de Dioniso. A
destruição do protagonista lembra a matança de animais e,
anteriormente, de seres humanos reais em rituais arcaicos. Não é por
acaso que a tragédia, como a conhecemos, data do apolíneo século V
a.C. da grandeza de Atenas, cuja obra fundamental é a _Oréstia_, de
Ésquilo, uma

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%
celebração da derrota do poder ctônico. O drama, gênero dionisíaco,
voltou-se contra Dioniso ao passar da mimese para o ritual, ou seja,
da ação para a representação. O "piedade e medo" de Aristóteles é uma
promessa quebrada, um pedido de visão sem horror.

Poucas tragédias gregas se adequam inteiramente ao comentário
humanista de que foram objeto. O resíduo bárbaro não se desprega.
Mesmo no século V a.C., como veremos, surgiu uma resposta satírica ao
teatro apolinizado, nas peças decadentes de Eurípides. Entre os
problemas que se colocam para uma avaliação precisa da tragédia grega,
está não apenas a perda de três quartos do acervo original de obras,
mas a não-sobrevivência de qualquer peça satírica completa. Esse era o
final da trilogia clássica, um obsceno teatro cômico de variedades. Na
tragédia grega, a comédia sempre teve a última palavra. A crítica
moderna projetou uma grande seriedade vitoriana - e, acho, protestante
- sobre a cultura pagã, que ainda hoje abafa o ensino das humanidades.
Paradoxalmente, a aceitação das bárbaras realidades ctônicas conduz
não à tristeza, mas ao humor. Daí a estranha risada de Sade, seu humor
em meio às mais fantásticas crueldades. Pois a vida não é uma
tragédia, mas uma comédia. A comédia nasce do choque entre Apolo e
Dioniso. A natureza está sempre puxando o tapete de debaixo de nossos
pomposos ideais.

São raras as protagonistas femininas nas tragédias. A tragédia é um
paradigma masculino de ascensão e queda, um gráfico em que os clímax
dramáticos e sexuais se encontram em sombria analogia. O clímax é
outra invenção moderna. As histórias tradicionais orientais são
picarescas, encadeamentos horizontais de incidentes. Têm pouco
suspense ou sentido de final. O agudo pico vertical da narrativa
ocidental, como, depois, da música orquestral, é exemplificado por
_Édipo rei_, de Sófocles, cujo momento de intensidade máxima
Aristóteles chama de _peripeteia_, reversão. O clímax dramático
ocidental foi produzido pelo _agon_ da vontade masculina. Identidade
através da ação. A ação é a rota de fuga da natureza, mas toda ação
completa o círculo e retorna às origens, o útero-túmulo da natureza.
Édipo, tentando escapar de sua mãe, corre direto para os braços dela.
A narrativa ocidental é uma história policial, um processo de
detecção. Mas, como o que se detecta é insuportável, cada revelação
leva a outra repressão.

As grandes mulheres da tragédia - Medéia e Fedra, de Eurípides,
Cleópatra e lady Macbeth, de Shakespeare, Fedra, de Racine -
desviam-se de sua identidade sexual por sua relação com a ação
masculina, que rompe esse vínculo. A mulher trágica é menos moral que
o homem. Sua vontade de poder é ostensiva. Suas ações estão sob uma
nuvem ctônica. São um conduto do irracional, abrindo o gênero a
intrusões da força bárbara que o drama deixou de fora em sua origem. A
tragédia é um veículo ocidental de teste e purificação da vontade
masculina. A dificuldade para enxertar-lhe protagonistas femininas
resulta não do preconceito masculino, mas de instintivas estratégias
sexuais. A mulher introduz crueldade bruta nas tragédias porque é ela
o problema que o gênero tenta corrigir.

A tragédia faz um jogo masculino, um jogo que ela mesma inventou para
arrancar a vitória das garras da derrota. O dilema humano decisivo não
é a esco-
  
</text><height>3506</height><width>2549</width><text_data><TextData><style>STYLE_NORMAL</style><line_space>0</line_space><angle>0</angle><language>pt</language><justification>0</justification><weight>WEIGHT_NORMAL</weight><face>Sans</face><letter_space>0</letter_space><size>651.0</size></TextData></text_data><y>0</y><x>0</x><type>1</type></DataBox></data_boxes><pixel_height>3506</pixel_height><resolution>(300, 300)</resolution><image_path>/tmp/camille_paglia_personas_sexuais_cap_1/0018.jpg</image_path><pixel_width>2549</pixel_width></PageData><PageData><data_boxes><DataBox><text>

% (find-personassexuais1page (+ -12 19))
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lha imperfeita, a ação imperfeita, ou mesmo a morte. O mais grave
desafio às nossas esperanças e sonhos é a confusa atividade biológica
normal, que prossegue dentro de nós e fora de nós a tóda hora de todo
dia. A consciência é uma pobre refém de seu envoltório de carne, cujos
impulsos, circuitos e murmúrios secretos ela não pode deter nem
acelerar. É esse o drama crônico, que não tem clímax, mas apenas uma
interminável ronda, ciclo após ciclo. O microcosmo reflete o
macrocosmo. O livre-arbítrio é natimorto nas células vermelhas de
nosso corpo, pois não há livre-arbítrio na natureza. Nossas escolhas
nos vêm preembaladas e por entrega especial, moldadas por mãos que não
são as nossas.

A inospitalidade da tragédia para com a mulher vem da inospitalidade
da natureza para com o homem. A identificação da mulher com a natureza
era universal na pré-história. Nas sociedades de caça ou agrárias, que
dependiam da natureza, a femealidade era cultuada como um princípio
imanente de fertilidade. Quando a cultura progrediu, os ofícios e o
comércio proporcionaram uma concentração de recursos que libertou o
homem dos caprichos do tempo e das restrições da geografia.
Deixando-se a natureza um passo atrás, a femealidade recuou em
importância.

As culturas budistas mantiveram os antigos sentidos da femealidade
muito tempo depois que o Ocidente a eles renunciou. Macho e fêmea, o
_yang_ e _yin_ chineses, são poderes que se equilibram e interpenetram
no homem e na natureza, a que a sociedade esta subordinada. Esse
código de aceitação passiva tem raízes na Índia, terra de súbitos
extremos, onde urna monção pode eliminar 50 mil pessoas do dia para a
noite. A femealidade das religiões de fertilidade tem sempre dois
gumes. A deusa da natureza indiana Kali é criadora e destruidora,
concedendo benesses com um conjunto de braços e cortando gargantas com
o outro. É a mulher cercada de caveiras. A ambivalência moral das
grandes deusas-mães tem sido convenientemente esquecida pelas
feministas americanas que as ressuscitaram. Não podemos agarrar a
lâmina nua da natureza sem derramar nosso sangue.

Desde o início, a cultura ocidental desviou-se da femealidade. A
última grande sociedade ocidental a adorar os poderes femininos foi a
Creta minóica. E, significativamente, caiu e não tornou a erguer-se. A
causa imediata desse colapso _ terremoto, peste, ou invasão - não tem
importância. A lição ê que a femealidade cultual não constitui
garantia de força ou viabilidade cultural. O que sobreviveu, o que
venceu as circunstâncias e deixou a marca de sua mente na Europa foi a
cultura guerreira micênica, que nos chegou por intermédio de Homero. A
vontade de poder masculina: micênicos do Sul e dórios do Norte iriam
fundir-se para formar a Atenas apolínea, da qual veio a linha
greco-romana da história ocidental.

As tradições apolínea e judeu-cristã são igualmente transcendentais.
Quer dizer, buscam superar ou transcender a natureza. Apesar do
elemento dionisíaco contrário da cultura grega, que pretendo discutir,
o alto classicismo foi uma realização apolínea. O judaísmo, seita
matriz do cristianismo, é o mais poderoso protesto contra a natureza.
O Velho Testamento afirma que um deus pai fez

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</text><height>3506</height><width>2549</width><text_data><TextData><style>STYLE_NORMAL</style><line_space>0</line_space><angle>0</angle><language>pt</language><justification>0</justification><weight>WEIGHT_NORMAL</weight><face>Sans</face><letter_space>0</letter_space><size>644.0</size></TextData></text_data><y>0</y><x>0</x><type>1</type></DataBox></data_boxes><pixel_height>3506</pixel_height><resolution>(300, 300)</resolution><image_path>/tmp/camille_paglia_personas_sexuais_cap_1/0019.jpg</image_path><pixel_width>2549</pixel_width></PageData><PageData><data_boxes><DataBox><text>

  
% (find-personassexuais1page (+ -12 20))
% ok
%
a natureza, e que a diferenciação entre objetos e sexos proveio de sua
masculinidade. O judeu-cristianismo, como a adoração grega dos deuses
do Olimpo, é um culto do céu. É um estágio avançado na história da
religião, que em toda parte teve início como culto da terra, veneração
da fértil natureza.

A evolução do culto da terra para o culto do céu transfere a mulher
para o reino inferior. Seus misteriosos poderes de procriação, e a
semelhança de seus seios, barriga e quadris redondos com os contornos
da terra, a põem no centro do simbolismo primitivo. Foi ela o modelo
para as figuras de Grande Mãe que coroaram o nascimento da religião em
todo o mundo. Ao contrário, como mostrarei ao discutir Hollywood no
livro que dará seqüência a este, os objetos de culto são prisioneiros
da inflação de seu próprio simbolismo. Todo totem vive em tabu.

A mulher era um ídolo da magia do ventre. Ela parecia inchar e dar à
luz por si só. Desde o começo dos tempos, a mulher parece um ser
estranho. O homem cultuava-a mas temia-a. Era o negro bucho que o
cuspira para fora e voltaria a devorá-lo. Os homens, juntando-se,
inventaram a cultura como uma defesa contra a natureza feminina. O
culto do céu foi o passo mais sofisticado nesse processo, pois essa
transferência do _locus_ criativo da terra para o céu é uma passagem
da magia do ventre para a magia da cabeça. E dessa defensiva magia da
cabeça veio a glória espetacular da civilização masculina, que ergueu
a mulher consigo. Até a linguagem e a lógica que a mulher moderna usa
para atacar a cultura patriarcal foram invenção do homem.

Daí os sexos se verem colhidos numa comédia de endividamento
histórico. O homem, repelido por sua dívida com uma mãe física, criou
uma realidade alternativa, um heterocosmo que lhe da a ilusão de
liberdade. A mulher, a princípio satisfeita em aceitar a proteção do
homem, mas agora inflamada por sua própria liberdade ilusória, invade
os sistemas masculinos e suprime sua dívida com ele roubando-os. Por
causa da magia da cabeça, ela negará que algum dia tenha havido um
problema de sexo e natureza. Herdou a ansiedade da influência.

A identificação da mulher com a natureza é o componente mais
perturbado e perturbador nessa discussão histórica. Terá sido verdade
algum dia? Ainda será? A maioria das leitoras feministas discordará,
mas acho que essa identificação não é mito, e sim realidade. Todos os
gêneros da filosofia, ciência, grande arte, atletismo e política foram
inventados pelos homens. Mas, pela lei prometéica de conflito e
captura, a mulher tem o direito de tomar o que queira e disputar com o
homem nos termos dele. Contudo, há um limite para o que ela pode
alterar em si mesma e na relação do homem com ela. Todo ser humano tem
de lutar com a natureza. Mas o fardo da natureza pesa mais sobre um
dos sexos. Corn sorte, isso não limitará a realização da mulher, ou
seja, sua ação no espaço social criado pelo homem. Mas tem de limitar
o erotismo, ou seja, nossas vidas imaginativas no espaço sexual, que
pode justapor-se ao espaço social, mas não lhe é idêntico.

Os ciclos da natureza são os ciclos da mulher. A femealidade biológica
é uma seqüência de retornos circulares, que começam e acabam no mesmo
pon-

20

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% (find-personassexuais1page (+ -12 21))
% ok
%
to. A centralidade da mulher dá-lhe identidade estável. Ela não
precisa tornar-se, mas apenas ser. Sua centralidade é um grande
obstáculo ao homem, cuja busca de identidade ela bloqueia. Ele precisa
transformar-se num ser independente, isto é, um ser livre dela. Se não
o fizer, simplesmente retornará a ela. A reunião com a mãe é um canto
de sereia que obceca nossa imaginação. Antes havia felicidade, e agora
há luta. Talvez na origem das fantasias arcádicas sobre uma era de
ouro perdida estejam tênues lembranças da vida antes da traumática
separação do nascimento. A idéia ocidental de história como um
movimento propulsor para o futuro, um desígnio progressivo ou
providencial, que atingirá o clímax na revelação da Segunda Vinda, é
uma formulação masculina. Mulher nenhuma, admito, poderia ter cunhado
tal idéia, já que se trata de uma estratégia de evasão da natureza
cíclica da mulher, na qual o homem tem horror de se ver apanhado. A
história evolucionária ou apocalíptica é uma lista de desejos
masculina, com um final feliz, um pico fálico.

A mulher não sonha com a fuga transcendental ou histórica ao ciclo
natural, já que ela _é_ esse ciclo. Sua maturidade sexual significa
casamento com a Lua, crescendo e minguando nas fases lunares. Lua,
mês, menstruação: mesma palavra, mesmo mundo\footnote{*}{(*) Em
  inglês, naturalmente: _Moon_, _month_, _menses_. (N. T.)} Os antigos
sabiam que a mulher está presa ao calendário da natureza, um
compromisso que não pode recusar. O padrão grego que vai de
livre-arbítrio a _hybris_ e tragédia é um drama masculino, uma vez que
a mulher jamais se iludiu (até recentemente) com a miragem do
livre-arbítrio. Ela sabe que não há livre-arbítrio, já que ela não é
livre. Não tem opção senão aceitar. Deseje ou não a maternidade, a
natureza a atrela ao bruto e inflexível ritmo da lei da procriação. O
ciclo menstrual é. um despertador que não pode ser parado enquanto a
natureza não quiser.

O aparelho reprodutor da mulher e imensamente mais complicado que o do
homem, e ainda mal compreendido. Tudo pode dar errado, ou causar
angústia mesmo dando certo. A mulher ocidental está em agônica relação
com o seu próprio corpo: para ela, normalidade biológica é sofrimento,
e a saúde uma doença. Afirma-se que a dismenorréia é uma doença da
civilização, pois as mulheres das culturas tribais têm poucos males
menstruais. Mas na vida tribal a mulher tem uma identidade abrangente
ou coletiva; a religião tribal cultua a natureza e a ela subordina-se.
É precisamente na avançada sociedade ocidental, que tenta melhorar ou
ultrapassar a natureza, e que erige o individualismo e a realização
pessoal como modelos, que a crua realidade da condição feminina emerge
com dolorosa clareza. Quanto mais a mulher corre em busca de
identidade e autonomia pessoais, quanto mais desenvolve sua
imaginação, mais feroz será a luta com a natureza - quer dizer, com as
obstinadas leis físicas de seu próprio corpo. E mais a natureza a
punirá: não se atreva a ser livre! pois seu corpo não lhe pertence.

O corpo feminino é uma máquina ctônica, indiferente ao espírito que o
habita. Organicamente, tem uma missão, a gravidez, que podemos passar
a vi-

21 
  
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% (find-personassexuais1page (+ -12 22))
% ok
%
da repelindo. A natureza só se importa com a espécie, jamais com os
indivíduos: as humilhantes dimensões desse fato biológico são
experimentadas de maneira mais direta pelas mulheres, que
provavelmente por causa disso têm maior realismo e sabedoria que os
homens. O corpo da mulher é um mar sobre o qual atua o movimento lunar
das ondas. Indolentes e adormecidos, seus tecidos adiposos
encharcam-se de água, e depois se enxugam de repente na maré alta
hormonal. O edema é nossa recaída de mamífero no vegetal. A gravidez
demonstra o caráter determinista da sexualidade da mulher. Toda mulher
grávida tem o corpo e o ego tomados por uma força ctônica além do seu
controle. Na gravidez desejada, é um sacrifício feliz. Mas na
indesejada, iniciada por estupro ou azar, é um horror. Pois o feto é
um tumor benigno, um vampiro que rouba para viver. O chamado milagre
do nascimento é a natureza dando as cartas.

Todo mês, para a mulher, é uma nova derrota da vontade. A menstruação
era chamada outrora de "maldição",\footnote{*}{(*) _The curse_. (N.
  T.)} uma referência à expulsão do Jardim do Éden, quando a mulher
foi condenada a parir com dor por causa do pecado de Eva. A maioria
das primeiras culturas cerca as mulheres menstruadas de tabus rituais.
As judias ortodoxas ainda se purificam da sujeira menstrual com o
_mikveh_, um banho ritual. As mulheres têm arcado com o fardo
simbólico das imperfeições humanas, suas bases na natureza. O sangue
menstrual é a mancha, a marca de nascença do pecado original, a
imundície que a religião transcendental deve lavar do homem. Será essa
identificação apenas fóbica, apenas misógina? Ou é possível que _haja_
alguma coisa misteriosa no sangue menstrual, justificando sua ligação
ao tabu? Sustentarei que não é o sangue menstrual em si que perturba a
imaginação - por mais inestancável que seja esse corrimento vermelho -
mas antes a albumina no sangue, os fiapos uterinos, a medusa placental
desse mar feminino. Essa é a matriz ctônica da qual surgimos. Sentimos
uma repugnância evolucionária pelo lodo, sítio de nossas origens
biológicas. Todo mês, é destino da mulher enfrentar oabismo do tempo e
do ser, o abismo que é ela mesma.

A Bíblia tem sido atacada por fazer da mulher a responsável pela queda
no drama cósmico humano. Mas ao pôr um conspirador masculino, a
serpente, como inimigo de Deus, o Gênesis se precavê e não leva sua
misoginia longe demais. A Bíblia desvia-se do verdadeiro adversário de
Deus, a natureza ctônica. A serpente não esta fora de Eva, mas nela.
Ela é o jardim _e_ a serpente. Anthony Storr diz sobre as bruxas: "Num
nível muito primitivo, todas as mães são falicas".\footnote{2} O Diabo
é uma mulher. Os movimentos de emancipação modernos, descartando
estereótipos que impedem o avanço social da mulher, recusam-se a
reconhecer o daimonismo da procriação. A natureza e serpentina, um
leito de cipós entrançados, plantas trepadeiras e rastejantes,
tateantes dedos dormentes de fétida vida orgânica, que Wordsworth nos
ensinou a chamar de belos. Os biólogos falam do cérebro reptílico do
homem, a parte mais antiga de nosso sistema nervoso superior,
sobrevivente matador da era arcaica. Eu digo que a

22

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% (find-personassexuais1page (+ -12 23))
% ok
%
mulher pré-menstrual levada à irritação ou à fúria ouve sinais do
cérebro reptílico. Nela, a perversidade latente do homem é manifesta.
Todo o inferno se desencadeia, o inferno da natureza ctônica, que o
humanismo moderno nega e reprime. Em toda mulher pré-menstrual que
luta para conter seu gênio, o culto do céu guerreia com o culto da
terra.

A identificação da mulher com a natureza na mitologia é correta. A
contribuição masculina à procriação é momentânea e transitória. A
concepção é uma fração de tempo, outro dos nossos fálicos picos de
ação, do qual o macho desliza inútil para fora. A mulher grávida é
daimônica, diabolicamente completa. Como entidade ontológica, não
precisa de nada nem de ninguém. Sustentarei que a mulher grávida,
meditando nove meses sobre sua própria criação, é o modelo de todo
solipsismo, que a atribuição histórica de narcisismo às mulheres é
outro mito verdadeiro. A aliança masculina e o patriarcado foram o
recurso a que o homem se viu obrigado, por seu terrível senso do poder
da mulher, da impermeabilidade, da arquétipa confederação dela com a
natureza ctônica. O corpo da mulher é um labirinto onde o homem se
perde. Ê um jardim murado, 0 _hortus conclusus_ medieval, onde a
natureza faz sua daimônica bruxaria. A mulher é a fabricante primeva,
a verdadeira Primeira Causa. Transforma um ranho de detrito numa rede
de ser senciente, flutuando no serpentino cordão umbilical pelo qual
traz todo homem na correia.

O feminismo tem sido simplista ao afirmar que os arquétipos femininos
são falsidades politicamente motivadas dos homens. A repugnância
histórica pela mulher tem uma base racional: o nojo é a reação
adequada da razão à grosseria da natureza procriadora. A razão e a
lógica, inspiradas pela ansiedade, são o domínio de Apolo, primeiro
deus do culto do céu. O apolíneo é severo e fóbico, isolando-se
friamente da natureza por sua pureza sobre-humana. Afirmo que a
personalidade e as realizações ocidentais, para o melhor e para o
pior, são em grande parte apolíneas. O grande adversário de Apolo,
Dioniso, governa o ctônio, cuja lei é a femealidade procriadora. Como
veremos, o dionisíaco é natureza líquida, um pântano miasmático que
tem como protótipo o poço estagnado do útero.

Devemos perguntar se a equivalência entre macho e fêmea no simbolismo
do Extremo Oriente foi tão culturalmente eficaz quanto a
hierarquização de macho e fêmea no Ocidente. Que sistema beneficiou
mais a mulher, em última análise? A ciência e a indústria ocidentais
libertaram as mulheres dos trabalhos tediosos e do perigo. Máquinas
fazem as tarefas domésticas. A pílula neutraliza a fertilidade. Parir
não é mais fatal. E a linha apolínea da racionalidade ocidental
produziu a agressiva mulher moderna, que pode pensar como o homem e
escrever livros desagradáveis. A tensão e o antagonismo na metafísica
ocidental elevaram os poderes corticais superiores humanos a grandes
alturas. A maior parte da cultura ocidental é uma distorção da
realidade. Mas a realidade _deve_ ser distorcida; quer dizer,
corrigida pela imaginação. A aquiescência budista ã natureza não é nem
exata a respeito da natureza nem justa com o potencial humano. O
apolíneo nos levou às estrelas.

23 
                                                                                                                                                                     
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% (find-personassexuais1page (+ -12 24))
% ok
%
Os arquétipos daimônicos da mulher, que enchem a mitologia mundial,
representam a incontrolável proximidade da natureza. A tradição deles
passa quase intacta dos ídolos pré-históricos, através da literatura e
da arte, para o cinema moderno. A imagem básica é da _femme fatale_, a
mulher fatal para o homem. Quanto mais se repele a natureza no
Ocidente, mais a _femme fatale_ reaparece, como um retorno do
reprimido. É o espectro da consciência de culpa do Ocidente em relação
ã natureza. Ê a ambigüidade moral da natureza, uma lua malévola a
romper incessantemente o nevoeiro de nossos sentimentos de esperança.

O feminismo descarta a _femme fatale_ como caricatura e calúnia. Se
ela existiu, foi simplesmente uma vítima da sociedade, recorrendo às
manhas destrutivas femininas pela falta de acesso ao poder político. A
_femme fatale_ era uma executiva _manquée_, sua energia neuroticamente
desviada para o _boudoir_. Com essas técnicas de desmistificação, o
feminismo se meteu numa enrascada. A sexualidade é um domínio sombrio
de contradição e ambivalência. Nem sempre se pode entendê-lo por meio
de modelos sociais, que o feminismo, como herdeiro do utilitarismo do
século XIX, insiste em impor-lhe. A mistificação continuará a ser
sempre a desordeira companheira do amor e da arte; Erotismo _é_
mística; ou seja, a aura de emoção e imaginação que cerca o sexo. Não
se pode "dar um jeito" nele, com códigos de conveniência social ou
moral, seja da esquerda ou da direita política. Pois o fascismo da
natureza é maior que o de qualquer sociedade. Há nas relações sexuais
uma instabilidade daimônica que talvez tenhamos de aceitar.

A _femme fatale_ é uma das mais mesmerizantes personas sexuais. Não é
ficção, mas uma extrapolação de realidades biológicas, na mulher, que
continuam sendo constantes. O mito da vagina dentada (_vagina
dentata_) dos índios norte-americanos é uma transcrição hediondamente
direta do poder feminino e do medo masculino. Metaforicamente, toda
vagina tem dentes secretos, pois o macho sai com menos do que ao
entrar. A mecânica básica da concepção exige ação do macho, mas apenas
passiva receptividade da fêmea. O sexo, como uma transação mais
natural que social, é pois na verdade uma espécie de drenagem da
energia masculina pela plenitude feminina. Castração física e
espiritual é o perigo que todo homem corre no intercurso com uma
mulher. O amor é o sortilégio pelo qual ele adormece seu medo sexual.
O vampirismo latente da mulher não é uma aberração social, mas um
desenvolvimento de sua função maternal, para a qual a natureza a
equipou com exaustiva minuciosidade. Para o homem, todo ato sexual é
um retorno à mãe, e uma capitulação a ela. Para os homens, o sexo é
uma luta por identidade. No sexo, o homem é consumido e novamente
liberado pelo poder dentado que o deu ã luz, o dragão fêmea da
natureza.

A _femme fatale_ foi produzida pela mística da ligação entre mãe e
filho. Uma das crenças modernas ê que sexo e procriação são
medicamente, cientificamente, intelectualmente "controlãveis". Se
mexermos bastante no mecanismo social, todos os problemas
desaparecerão. Enquanto isso, o número de divórcios sobe às alturas. O
casamento convencional, apesar de suas iniqüidades, represa-

24 
  
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% (find-personassexuais1page (+ -12 25))
% ok
%
va o caos da libido. Quando o prestígio do casamento está em baixa,
todo o pervemo daimonismo do instinto sexual vem à tona. O
individualismo, o ego não contido pela sociedade, conduz à servidão
mais grosseira da contenção pela natureza. Todo caminho que parte de
Rousseau leva a Sade. A mística de nosso nascimento de mães humanas é
uma das nuvens daimônicas que não podemos afastar com pequenos gritos
de independência. Apolo pode desviar-se da natureza, mas não pode
obliterá-la. Como seres emocionais e sexuais, seguimos o círculo todo.
A velhice é uma segunda infância, em que revivem as mais antigas
lembranças. De modo arrepiante, os pacientes em coma, de qualquer
idade, encolhem-se automaticamente para a posição fetal, da qual têm
de ser arrancados por enfermeiros. Estamos atados a nosso nascimento
por inabaláveis visões da memória sensória.

Psicologias rousseauístas como o feminismo afirmam a benevolência
última da emoção humana. Num sistema assim a _femme fatale_
logicamente não tem lugar. Eu sigo Freud, Nietzsche e Sade em minha
visão da amoralidade da vida instintual. Em certo nível, todo amor é
combate, uma luta com fantasmas. Só somos _a favor_ de alguma coisa
sendo _contra_ outra. Quem julga estar tendo encontros sexuais
agradáveis, casuais, descomplicados, com amigo, esposo ou estranho,
está bloqueando da consciência o emaranhado da psicodinâmica em ação,
do mesmo modo como bloqueia os choques hostis de sua vida nos sonhos.
O romance familiar atua o tempo todo. A _femme fatale_ é uma das
sofisticações do narcisismo da mulher, da ambivalente orientação para
si mesma quase completa com o nascimento de um filho ou a
transformação do esposo ou amante em filho.

As mães podem ser fatais para os filhos. Foi contra a mãe que os
homens ergueram seu alto edifício de política e culto do céu. Ela é
Medusa, em quem Freud vê o púbis feminino castrador e castrado. Mas a
cabeleira de serpentes de Medusa é também o enredado matagal da
natureza. Sua careta hedionda é o medo masculino do riso das mulheres.
Aquela que dá a vida também bloqueia o caminho da liberdade. Assim,
concordo com Freud que temos o direito de frustrar as compulsões
procriativas da natureza, por meio da sodomia e do aborto. O
homossexualismo masculino talvez seja a mais corajosa das tentativas
de fugir à _femme fatale_ e derrotar a natureza. Dando as costas à mãe
medusina, em honra ou antipatia a ela, o homossexualmasculino é um dos
grandes forjadores da identidade absolutista ocidental. Mas é claro
que a natureza venceu, como sempre, fazendo da doença o preço do sexo
promíscuo.

A permanência da _femme fatale_ como persona sexual faz parte do
incômodo peso do erotismo, sob o qual soçobram a ética e a religião. O
erotismo é o ponto fraco da sociedade, pelo qual a natureza ctônica a
invade. Ela pode aparecer como mãe medusina ou frígida ninfa,
mascarando-se na brilhante luminosidade do grande fascínio apolíneo.
Sua fria inatingibilidade convida, encanta e destrói. Não é uma
neurótica, mas, se isso faz alguma diferença, uma psicopata. Ou seja,
tem uma amoral ausência de afeto, uma serena indiferença pelo
sofrimento dos outros, que convida e observa desapaixonadamente, para
testar

25 

</text><height>3506</height><width>2549</width><text_data><TextData><style>STYLE_NORMAL</style><line_space>0</line_space><angle>0</angle><language>pt</language><justification>0</justification><weight>WEIGHT_NORMAL</weight><face>Sans</face><letter_space>0</letter_space><size>647.0</size></TextData></text_data><y>0</y><x>0</x><type>1</type></DataBox></data_boxes><pixel_height>3506</pixel_height><resolution>(300, 300)</resolution><image_path>/tmp/camille_paglia_personas_sexuais_cap_1/0025.jpg</image_path><pixel_width>2549</pixel_width></PageData><PageData><data_boxes><DataBox><text>

% (find-personassexuais1page (+ -12 26))
% ok
%
seu poder. Não se pode traduzir inteiramente, em termos masculinos, a
mística da _femme fatale_. Vou falar em detalhes do menino bonito, uma
das mais estonteantes personas sexuais do Ocidente. Contudo, o perigo
do _homme fatal_, materializado no jovem prostituto de hoje, é que ele
vai embora, desaparece atrás de outros amores, outras terras. Ê um
errante, um caubói, um marinheiro. Mas o perigo da _femme fatale_ é
que _ela fica_, parada, plãcida, e paralisante. Sua permanência é um
fardo daimônico, a ubiqüidade da _Mona Lisa_ de Walter Pater, que
sufoca a história. É um símbolo espinhoso da perversidade do sexo. Ela
gruda.

Encaminhamo-nos, neste capítulo, para uma teoria da beleza. Acredito
que o senso estético, como tudo mais até agora, é um desvio do ctônio.
É um deslocamento de uma área de realidade para outra, análogo à
passagem do culto da terra para o culto do céu. Ferenczi fala da
substituição do nariz animal pelo olho humano, devido à nossa posição
ereta. O olho é peremptório em seus julgamentos. Decide o que ver e
por quê. Cada um de nossos olhares é tanto exclusão quanto inclusão.
Nós escolhemos, comentamos e realçamos. Nossa idéia do belo é uma
noção limitada, que não se pode aplicar ao submundo metamórfico da
terra, um domínio cataclísmico de violência ctônica. Preferimos não
ver essa violência em nossos passeios diários. Toda vez que dizemos
que a natureza é bela, estamos fazendo uma prece, dedilhando as contas
de nossas preocupações.

A fria beleza da _femme fatale_ é outra transformação da feiúra
crônica. As fêmeas animais são em geral menos bonitas que os machos.
As penas sem graça da mãe pássaro constituem uma camuflagem, para
proteger o ninho dos predadores. Os pássaros machos são criaturas de
espetacular ostentação, tanto na plumagem quanto no porte, em parte
para impressionar as fêmeas e vencer os rivais, e em parte para
desviar os inimigos do ninho. Entre os seres humanos, a exibição
ritual do macho é igualmente extrema, mas pela primeira vez a fêmea se
torna um objeto de pródiga beleza. Por quê? A fêmea se enfeita não só
para aumentar seu valor enquanto propriedade, como gostaria de
desmistificar o marxismo, mas para assegurar sua desejabilidade. A
consciência tornou-nos covardes a todos. Os animais não têm medo
sexual, porque não são seres racionais. Agem sob um imperativo
biológico puro. A mente, que possibilitou à humanidade adaptar-se e
florescer como espécie, também complicou infinitamente nosso
funcionamento como seres físicos. Vemos demais, e por isso temos de
limitar severamente nossa visão. O desejo é cercado de todos os lados
por ansiedade e dúvida. A beleza, um êxtase para os olhos, nos
intoxica e nos permite agir. A beleza é nossa revisão apolínea do
ctônio.

A natureza é um espetáculo darwiniano de comedores e comidos. Todas as
fases da procriação são governadas pelo apetite: o intercurso sexual,
dos beijos à penetração, consiste de movimentos de mal contida
crueldade e consumo. A longa gravidez da fêmea humana e a extensa
infância de seu bebê, que não se sustenta a si mesmo por sete anos ou
mais, produziram o _agon_ da dependência psicolôgica que esmaga o
homem a vida inteira. O homem, justificadamente, teme ser devorado
pela mulher, que é a procuradora da natureza.

26 
  
</text><height>3506</height><width>2549</width><text_data><TextData><style>STYLE_NORMAL</style><line_space>0</line_space><angle>0</angle><language>pt</language><justification>0</justification><weight>WEIGHT_NORMAL</weight><face>Sans</face><letter_space>0</letter_space><size>655.0</size></TextData></text_data><y>0</y><x>0</x><type>1</type></DataBox></data_boxes><pixel_height>3506</pixel_height><resolution>(300, 300)</resolution><image_path>/tmp/camille_paglia_personas_sexuais_cap_1/0026.jpg</image_path><pixel_width>2549</pixel_width></PageData><PageData><data_boxes><DataBox><text>

% (find-personassexuais1page (+ -12 27))
% ok
  
A repressão é uma adaptação evolucionária que nos permite funcionar
sob o fardo da consciência expandida. Pois aquilo de que temos
consciência poderia nos levar à loucura. A grosseira gíria masculina
fala dos órgãos genitais femininos como "talho" ou "racha". Freud
observa que Medusa transforma os homens em pedra porque, à primeira
vista, o garoto acha o órgão genital feminino uma ferida, de onde o
pênis foi cortado. É de fato uma ferida, mas foi o bebê que foi
cortado, com violência: o cordão umbilical é uma amarra, serrada por
um grupo de resgate social. A necessidade sexual empurra o homem de
volta a essa cena de sangue, mas ele não pode aproximar-se dela sem
tremores de apreensão, que esconde com eufemismos de amor e beleza.
Contudo, quanto menos bem-educado - ou seja, menos socializado - mais
agudo será o seu senso da animalidade do sexo, e mais grosseira a sua
linguagem. O casca-grossa desbocado é produto não do sexismo da
sociedade, mas da ausência de sociedade. Pois a natureza é a mais
desbocada de todos nós.

O atual avanço da mulher na sociedade não é uma viagem do mito para a
verdade, mas do mito para um novo mito. A ascensão da mulher racional,
tecnológica, pode exigir a repressão de realidades arquetípicas
desagradáveis. Ferenczi observa: "As periódicas pulsações na
sexualidade feminina (puberdade, menstruações, gravidezes e partos,
climatério) exigem uma repressão muito mais poderosa da parte da
mulher que a necessária para o homem".\footnote{3} Em sua briga com a
sociedade masculina, o feminismo precisa suprimir a prova mensal do
domínio da mulher pela natureza ctônica. A menstruação e o parto são
uma afronta à beleza e à forma. Em termos estéticos, são espetáculos
de assustadora miséria. A vida moderna, com seus hospitais e produtos
de papel, distanciou e sanitizou esses mistérios primitivos, como fez
com a morte, que antes era uma horrorosa coisa domestica. Muitíssima
coisa está sendo varrida para baixo do tapete: o espanto e terror que
é nosso destino.

A crueza semelhante a uma ferida do órgão genital feminino é um
símbolo da irredimibilidade da natureza ctônica. Em termos estéticos,
o órgão genital feminino tem cores lúgubres, contornos inconstantes e
arquitetura incoerente. Os órgãos genitais masculinos, por outro lado,
embora se arrisquem a cair no ridículo por sua borrachosa indecisão
(uma heroína de Silvia Plath pensa, memoravelmente, num "pescoço de
peru, com moelas de peru"), têm um desenho matemático racional, uma
sintaxe. Mas isso não é uma virtude absoluta, já que pode tender a
confirmar o homem em suas muitíssimas percepções errôneas da
realidade. A estética pára onde o sexo começa. G. Wilson Knight
declara: "Todo amor físico é, de certo modo, uma vitória sobre
segredos e repulsas físicos".\footnote{4} O sexo é sujo e desordenado,
um retorno ao que Freud chama de polimorfa perversidade do bebê, um
animado refocilar em todos os fluidos do corpo. Santo Agostinho diz:
"Nascemos entre fezes e urina". Essa visão misógina da saída do bebê,
maculado pelo pecado, do canal de nascimento, está próxima da verdade
crônica. Mas a excreção, pela qual a natureza uma vez na vida atua
igualmente sobre os sexos, pode ser salva pela comédia, como vemos em
Aristófanes, Rabelais, Pope e Joyce. A excreção encontrou um lugar na
alta cultura.

27 

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% (find-personassexuais1page (+ -12 28))
% ok
%
A menstruação e o parto são demasiado bárbaros para a comédia. Sua
feiúra produziu o gigantesco deslocamento do status histórico da
mulher como objeto sexual, cuja beleza se discute e modifica
interminavelrnente. A beleza da mulher é um compromisso com sua
perigosa fascinação arquetípica. Dá ao olho a consoladora ilusão de
controle intelectual sobre a natureza.

[br]

Minha explicação para o domínio do homem na arte, ciência e política,
um fato indiscutível da história, baseia-se numa analogia entre a
fisiologia sexual e a estética. Afirmo que toda realização cultural é
uma projeção, um desvio para a transcendência apolínea, e que os
homens se destinam, anatomicamente, a ser projetores. Mas, assim como
no caso de Édipo, o destino pode ser uma maldição.

A maneira como conhecemos o mundo, e como ele nos conhece, baseia-se
em padrões de biografia sexual e geografia sexual. O que brota na
consciência é formado antes pelo daimonismo dos sentidos. A mente é
escrava do corpo. Não existe objetividade perfeita. Todo pensamento
traz alguma carga emocional. Houvesse tempo ou energia para isso,
podia-se fazer com que cada escolha. casual, da cor de uma escova de
dentes à decisão sobre um menu, revelasse seu significado secreto no
drama interior de nossas vidas. O reino do número, a cristalina
matemática da pureza apolínea, foi inventado nos primeiros tempos pelo
homem ocidental como refúgio contra o úmido emocionalismo e a
espinhosa desordem da mulher e da natureza. A mulher que consegue
sobressair em matemática destaca-se num sistema imaginado pelo homem
para dominar a natureza. O número é a mais impositiva e menos natural
das chupetas, a anelante esperança de objetividade do homem. É para o
número que ele - e agora ela - se retira fugindo do lodaçal ctônico do
amor, do ódio, e do romance familiar.

Mesmo hoje, em geral são os homens, mais do que as mulheres, que
afirmam a superioridade da lógica sobre a emoção. E tendem a fazer
isso, comicamente, nos momentos de maior caos emocional, que podem ter
causado e não conseguem evitar. Os artistas e atores masculinos têm
uma função cultural mantendo aberta a linha de emoção do domínio
masculino para o feminino. Todo homem abriga um território feminino
íntimo governado por sua mãe, da qual ele jamais consegue se livrar
por completo. Desde o romantismo, a arte e o estudo da arte
tornaram-se veículos para explorar a vida emocional reprimida do
Ocidente, embora jamais saberiamos disso se julgássemos por metade da
tediosa erudição que brotou a sua volta. A poesia é o elo de ligação
entre o corpo e a mente. Toda idéia na poesia se funda na emoção. Toda
palavra é um apalpamento do corpo. As múltiplas interpretações que
cercam um poema refletem a violenta incontrolabilidade da emoção, na
qual a natureza faz o que quer. Emoção _é_ caos. Toda emoção benigna
tem um reverso de negatividade. Assim, a fuga da emoção para o número
é outra estratégia crucial do Ocidente apolíneo em sua longa luta com
Dioniso.

Emoção é paixão, um _continuum_ de erotismo e agressão. Amor e ódio
não são opostos: há apenas mais paixão e menos paixão, uma diferença
de quantida-

28 
  
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% (find-personassexuais1page (+ -12 29))
% ok
%
de, não de espécie. Viver em amor e paz é uma das maiores contradições
que o cristianismo impôs a seus seguidores, um ideal impossível e
artificial. Desde o romantismo, os artistas e intelectuais vêm se
queixando das regras sexuais da Igreja, mas elas são apenas uma
pequena parte da guerra cristã contra a natureza pagã. Só um santo
pode manter o código de amor cristão. E os santos são brutais em suas
exclusões: têm de deixar de fora um enorme volume de realidade, a
realidade das personas sexuais e a da natureza. Amor a todos significa
frieza para com alguma coisa ou alguém. Mesmo Jesus, lembremos, foi
desnecessariamente rude com a própria mãe em Canaã.

O superfluxo crônico de emoção é um problema masculino. O homem tem de
combater essa enormidade, que reside na mulher e na natureza. Ele só
pode atingir a autonomia repelindo a nuvem daimônica que o engoliria:
o amor materno, que bem poderíamos chamar de ódio materno. Amor
materno, ódio materno, por ela ou dela, um imenso conglomerado de
força natural. A igualdade política para as mulheres fará muito pouca
diferença nesse torvelinho emocional que prossegue acima e abaixo da
política, fora do esquema da vida social. Enquanto todos os bebês não
nascerem de jarras de vidro, não cessará o combate entre mãe e filho.
Mas num futuro totalitário, que tenha tirado a procriação das mãos da
mulher, não haverá afeto nem arte. Os homens serão máquinas, sem dor,
mas também sem prazer. A imaginação tem um preço, que pagamos todo
dia. Não há como fugir das correntes biológicas que nos agrilhoam.

Que deu a natureza ao homem para se defender da mulher? Aqui chegamos
à origem das realizações culturais do homem, que resultam tão
diretamente de sua singular anatomia. Nossas vidas como seres físicos
dão origem a metáforas bãsicas de apreensão, que variam muitíssimo
entre os sexos. Aqui, não pode haver igualdade. O homem é sexualmente
compartimentado. Genitalmente, está condenado a um perpétuo modelo de
linearidade, foco, mira e pontaria. Tem de aprender a mirar. Sem mira,
a urina e a ejaculação acabam num emporcalhamento infantil de si mesmo
ou do ambiente. O erotismo da mulher é difundido por todo o corpo. Seu
desejo de carícias preliminares continua sendo uma área de má
comunicação entre os sexos. A concentração genital do homem é uma
redução, mas também uma intensificação. Ele é vítima de indomáveis
altos e baixos. A sexualidade masculina é inerentemente
maníaco-depressiva. O estrogênio tranqüiliza, mas o androgênio excita.
Os homens vivem em constante estado de ansiedade sexual, pisando nas
brasas de seus hormônios. No sexo, como na vida, são impelidos para
_mais adiante_ - adiante do ego, adiante do corpo. Essa regra se
aplica até no ventre. Todo feto torna-se fêmea se não estiver
mergulhado em hormônio masculino, produzido por um sinal dos
testículos. Antes do nascimento, portanto, o macho já está adiante da
fêmea. Mas estar adiante é estar exilado do centro da vida. Os homens
sabem que são exilados sexuais. Vagam pela terra em busca de
satisfação, desejando e desprezando, jamais satisfeitos. Não há nada
nesse movimento angustiado que a mulher possa invejar.

A metáfora genital do homem é concentração e projeção. A natureza
dá-lhe concentração para ajuda-lo a vencer seu medo. O homem aborda a
mulher

29 
  
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% (find-personassexuais1page (+ -12 30))
% ok
%
em explosões de espasmódica concentração. Isso lhe dá a ilusão de
controle temporário dos mistérios arquetípicos que o produziram.
Dá-lhe a coragem de voltar. O sexo é metafísico para o homem de um
modo que não é para a mulher. As mulheres não têm problemas a resolver
pelo sexo. No físico e no psicológico, são serenamente
auto-suficientes. Talvez prefiram realizar, mas não precisam. Não são
empurradas para mais adiante por seus corpos refratários. Mas os
homens estão em desequilíbrio. Têm de buscar, perseguir, cortejar ou
tomar. Pombos no gramado, infelizmente: nesses rituais à beira do
jardim, podemos saborear o _pathos_ cômico do sexo. Quantas vezes
avistamos um pombo macho fazendo avanços desesperados, inflados, para
a fêmea, que repetidas vezes lhe dá as costas e se afasta indiferente.
Mas, pela concentração e insistência, ele pode ganhar o dia. A
natureza abençoou-o com o esquecimento de seu próprio absurdo. Sua
objetividade é ao mesmo tempo uma dádiva e um fardo. Nos seres
humanos, a concentração sexual é o instrumento do homem para
recompor-se e conter à força o perigoso superfluxo ctônico de emoção e
energia que identifico com a mulher e a natureza. No sexo, o homem é
empurrado para o próprio abismo de que foge. Faz uma viagem de ida e
volta ao não-ser.

Concentração para projetar-se mais adiante. A projeção masculina de
ereção e ejaculação é um paradigma para toda projeção e
conceitualização - da arte e filosofia à fantasia, alucinação e
obsessão. As mulheres têm conceitualizado menos na história não porque
os homens as impediram de fazê-lo, mas porque elas não precisam
conceitualizar para existir. Deixo aberta a questão das diferenças
cerebrais. Conceituação e mania sexual podem vir da mesma parte do
cérebro masculino. O fetichismo, por exemplo, uma prática que, como a
maioria das perversões sexuais, limita-se aos homens, é visivelmente
uma atividade conceitualizante ou criadora de símbolos. A preferência
comercial muitíssimo maior do homem pela pornografia é análoga.

Uma ereção é um _pensamento_, e o orgasmo um ato de imaginação. O
homem tem de conseguir por força de vontade sua autoridade sexual
diante da mulher, que é uma sombra de sua mãe e de todas as mulheres.
O fracasso e a humilhação estão sempre à espreita. Nenhuma mulher tem
de provar-se mulher do modo cruel que o homem tem de provar-se homem.
Ele tem de atuar, senão o espetáculo não continua. A convenção social
é irrelevante. Um fracasso é um fracasso. De qualquer modo, e
ironicamente, o êxito sexual sempre acaba em frouxidão. Toda projeção
masculina é transitória, e tem de ser renovada ansiosamente,
eternamente. Os homens entram em triunfo, mas saem em decrepitude. O
ato sexual imita cruelmente o declínio e queda da história. A aliança
masculina é uma sociedade de autopreservação, uma reafirmação colegial
por meio de esquemas de referência maiores, artificiais. A cultura é o
férreo reforço, pelo homem, de suas projeções privadas sempre
periclitantes.

Concentração e projeção são admiravelmente demonstradas pelo ato de
urinar, uma das mais eficientes compartimentações da anatomia
masculina. Freud acha que o homem primitivo se enaltecia com sua
capacidade de apagar uma fogueira com um jato de urina. Coisa estranha
de orgulhar-se, mas certamente

30 
  
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% (find-personassexuais1page (+ -12 31))
% ok
%
além do âmbito da mulher, que torraria o traseiro se tentasse. O ato
de urinar masculino é realmente um feito, um arco de transcendência. A
mulher simplesmente molha o chão sobre o qual está. O urinar masculino
é uma forma de comentário. Pode ser amistoso quando partilhado, mas
muitas vezes é agressivo, como na desfiguração de monumentos públicos
por astros do rock dos anos 60. Mijar em cima de alguma coisa é
criticar. John Wayne urinou nas botas de um rabugento diretor, diante
do elenco e da equipe. Este é gênero de auto-expressão que a mulher
jamais dominará. Um cachorro que marca todo arbusto de uma quadra é um
artista do grafite, deixando sua rude assinatura a cada levantada da
perna. As mulheres, como as cadelas, se agacham presas à terra. Não há
projeção além das fronteiras do ego. O espaço é reivindicado pela
ocupação, o direito do posseiro.\NT{Jogo de palavras intraduzível com
  _squatter_, que tanto significa "o que se agacha" quanto "posseiro".
  (N. T.)}

O caráter desajeitado, solipsista, da fisiologia feminina é
tediosamente evidente nos acontecimentos esportivos e concertos de
rock, onde cinqüenta mulheres aguardam em fila para entrar nas cabines
isoladas do toalete. Enquanto isso, seus amigos homens abrem e fecham
o zíper e ficam em volta olhando o relógio e revirando os olhos. A
idéia freudiana da inveja do pênis mostra-se muito real quando o homem
no boteco lotado se alivia feliz da vida nos becos da meia-noite, para
vexame de suas companheiras que já quase fazem xixi nas calças. Mas
essa compartimentação ou isolamento da genitalidade masculina tem seu
lado negro. Pode levar a uma dissociação de sexo e emoção, à tentação,
promiscuidade e doença. O homossexual masculino moderno, por exemplo,
busca êxtase na sordidez dos banheiros públicos, para as mulheres
talvez o lugar menos erótico do mundo.

As metáforas de concentração e projeção do homem são ecos tanto do
corpo quanto da mente. Sem elas, ele estaria desamparado diante do
poder da mulher. Sem elas, a mulher há muito teria absorvido toda a
criação em si. Não haveria cultura, sistema, piramidização de uma
hierarquia sobre outra. O culto da terra deve perder para o culto do
céu, se a mente quiser livrar-se da matéria. Ironicamente, quanto mais
a mulher moderna pensa com clareza apolínea, mais participa da negação
histórica de seu sexo. A igualdade política para as mulheres, apesar
de desejável e necessaria, não vai remediar a disjunção radical entre
os sexos que começa e termina no corpo. Os sexos sempre serão abalados
por violentos choques de atração e repulsão.

A androginia, que algumas feministas defendem como um esquema
pacifista para a utopia sexual, pertence mais à vida contemplativa que
à ativa. É a antiga prerrogativa de sacerdotes, xamãs e artistas. As
feministas politizaram-na como uma arma contra o princípio masculino.
Redefinida, agora significa que os homens devem ser como as mulheres,
e as mulheres podem ser como quiserem. A androginia é uma anulação da
concentração e projeção masculinas. As receitas para o futuro, de
acadêmicos e escritores burgueses, trazem sua pró-

31 

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% (find-personassexuais1page (+ -12 32))
% ok
%
pria tendenciosidade. A reforma do departamento de inglês de uma
universidade nada significa na oficina mecânica da esquina. A
concentração e projeção masculinas são visíveis por toda parte na
agressiva energia das ruas. Felizmente, os homossexuais masculinos de
todas as classes sociais têm preservado o culto do masculino, que
portanto jamais perderá sua legitimidade estética. Os grandes picos da
cultura ocidental foram acompanhados por uma alta incidência de
homossexualismo masculino - na Atenas clássica, na Florença e na
Londres do Renascimento. A concentração e projeção masculinas realçam
a si mesmas, levando a supremos feitos de conceitualização apolínea.

Se a fisiologia sexual fornece o modelo para nossa experiência do
mundo, qual é a metáfora básica da mulher? É o mistério, o _oculto_.
Karen Horney fala da impossibilidade de a menina ver o próprio órgão
genital, e da capacidade de o menino de ver os seus, como a origem da
"maior subjetividade da mulher, em comparação com a maior objetividade
do homem".\footnote{5} Reformulando isso com minha ênfase diferente: a
ilusória certeza masculina de que a objetividade é possível baseia-se
na visibilidade de seus órgãos genitais. Segundo, essa certeza é um
desvio defensivo da invisibilidade rsibilidade do útero, causadora de
ansiedade. As mulheres tendem a ser mais realistas e menos obsessivas
por causa de sua tolerância com a ambigüidade, que aprendem com a
incapacidade de aprender sobre os próprios corpos. As mulheres aceitam
a limitação do conhecimento como sua condição natural, uma grande
verdade humana que um homem talvez leve uma vida para alcançar.

O insuportável mistério do corpo feminino aplica-se a todos os
aspectos das relações dos homens com as mulheres. Que aparência terá
aí dentro? Ela tem orgasmo? É mesmo meu filho? Quem foi de fato meu
pai? O mistério envolve a sexualidade da mulher. Esse mistério é o
principal motivo para o aprisionamento que o homem lhe impôs. Só
confinando a esposa num harém trancado, guardado por eunucos, ele
podia ter certeza de que o filho dela era dele também. A visibilidade
genital do homem é uma das origens de seu desejo científico de teste
externo, ratificação, prova. Por esse método, espera solucionar a
derradeira história policial, seu nascimento ctônico. A mulher é
velada. O despedaçamento violento desse véu talvez seja um dos motivos
dos estupros por gangues e assassinatos com estupros, particularmente
as eviscerações ritualísticas à la Jack, o Estripador. A escolha do
útero da vítima pelo Estripador tem um paralelo exato no ritual de
algumas tribos selvagens da África do Sul. Os crimes sexuais são
sempre masculinos, nunca femininos, porque tais crimes são ataques
conceitualizadores à inatingível onipotência da mulher e da natureza.
O corpo de toda mulher contém uma célula de noite arcaica, onde todo
conhecimento deve parar. Esse é o profundo significado por trás do
_strip-tease_, uma dança sagrada de origens pagãs, que, como a
prostituição, o cristianismo jamais conseguiu liquidar. As danças
eróticas de machos não são comparáveis, pois uma mulher nua leva para
fora do palco uma ocultação final, aquela escuridão ctônica da qual
viemos.

O corpo da mulher é um lugar secreto, sagrado. É um _temenos_, ou
recinto ritual, uma palavra grega que adoto para a discussão da arte.
No espaço confi-
  
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% (find-personassexuais1page (+ -12 33))
% ok
%
nado do corpo da mulher, a natureza atua em seu estado mais negro e
mecânico. Toda mulher é uma sacerdotisa que guarda o _temenos_ de
mistérios daimônicos. A virgindade é categoricamente diferente para
os sexos. Um menino que se torna homem busca experiência. O pênis é
como o olho ou a mão, uma extensão do ego que se projeta para fora.
Mas a menina é um vaso lacrado, que tem de ser arrombado pela força. O
corpo feminino é o protótipo de todos os espaços sagrados, do
santuário na caverna ao templo e à igreja. O útero é o velado _sancta
sanctorum_ um grande problema, como veremos, para polemistas sexuais
como William Blake, que buscam abolir a culpa e o segredo do sexo. O
tabu sobre o corpo da mulher é o tabu que sempre paira sobre o lugar
da magia. A mulher é literamente o oculto, que significa "o
escondido". Esses sentidos misteriosos não podem ser mudados, só
suprimidos, até voltarem a irromper na consciência cultural. A
igualdade política só dara certo em termos políticos. Nada pode contra
o arquétipo. Matem a imaginação, lobotomizem o cérebro, castrem e
operem: aí os sexos serão os mesmos. Até então, temos de viver e
sonhar na daimônica turbulência da natureza.

Tudo que é sagrado e inviolável provoca profanação e violação. Todo
crime _pode_ ser cometido, _será_. O estupro é uma forma de agressão
natural que só pode ser controlada pelo contrato social. A mais
ingênua formulação do feminismo moderno é sua afirmação de que o
estupro é um crime de violência mas não de sexo, que é apenas poder
mascarado de sexo. Mas sexo _é_ poder, e todo poder é inerentemente
agressivo. O estupro é o poder masculino combatendo o poder feminino.
Não deve ser mais desculpado que o homicídio ou qualquer outro ataque
aos direitos civis de outrem. A sociedade é a proteção da mulher
contra o estupro, e não, como afirmam absurdamente algumas feministas,
a causa do estupro. O estupro é a expressão sexual da vontade de
poder, que a natureza planta em todos nós, e que a civilização surgiu
para conter. Por conaguinte, o estuprador é um homem com pouca
socialização, e não com socialização demais. Há uma evidência mundial
esmagadora de que, sempre que os controles sociais são enfraquecidos,
como nas guerras ou na anarquia, até homens civilizados comportam-se
de modos incivilizados, entre os quais está a barbaridade do estupro.

As metáforas latentes do corpo asseguram a sobrevivência do estupro,
que é apenas um desenvolvimento em grau de intensidade dos impulsos
básicos do sexo. A perda da virgindade de uma garota é sempre, em
algum sentido, uma violação de santidade, uma invasão de sua
integridade e identidade. Defloramento _é_ destruição. Mas a natureza
cria por meio da violência e da destruição. A violência mais comum do
mundo é o parto, com sua dor e sangueira apavorantes. A natureza dá
aos homens infusões de hormônios de dominação, a fim de lançá-los
contra o paralisante mistério da mulher, de quem eles, de outro modo,
se esquivariam. O poder dela como senhora do parto já é demasiado
extremo. Luxúria e agressão se fundem nos hormônios masculinos. Quem
duvida disso jamais passou muito tempo com cavalos. Os garanhões são
tão perigosos que têm de ser enjaulados em baias com barras; depois de
castrados, ficam tão

33
  
</text><height>3506</height><width>2549</width><text_data><TextData><style>STYLE_NORMAL</style><line_space>0</line_space><angle>0</angle><language>pt</language><justification>0</justification><weight>WEIGHT_NORMAL</weight><face>Sans</face><letter_space>0</letter_space><size>643.0</size></TextData></text_data><y>0</y><x>0</x><type>1</type></DataBox></data_boxes><pixel_height>3506</pixel_height><resolution>(300, 300)</resolution><image_path>/tmp/camille_paglia_personas_sexuais_cap_1/0033.jpg</image_path><pixel_width>2549</pixel_width></PageData><PageData><data_boxes><DataBox><text>



% (find-personassexuais1page (+ -12 34))
% ok
%
dóceis que servem de montaria para crianças. A disparidade hormonal
nos seres humanos não é tão brutal, mas é mais do que agrada aos
rousseauístas pensar. Quanto mais testosterona, mais elevada a libido.
Quanto mais dominante o homem, mais freqüentes suas contribuições para
o fundo comum genético. Mesmo em nível microscópico, a fertilidade
masculina está em função não apenas do número de espermatozóides, mas
de sua motilidade, isto é, de seu movimento incansável, que aumenta as
possibilidades de concepção. Os espermatozóides são tropas de assalto
em miniatura, e o óvulo uma cidadela que deve ser invadida. Os
espermatozóides fracos ou passivos simplesmente ficam ali parados,
como patos mortos. A natureza premia a energia e a agressão.

Profanação e violação fazem parte da perversidade do sexo, que jamais
se conformará com teorias liberais de benevolência. Todo modelo de
comportamento sexual moral ou politicamente correto _será subvertido_
pela lei daimônica da natureza. A toda hora, de todo dia, algum horror
está sendo praticado em alguma parte. O feminismo, argumentando a
partir da opinião mais branda da mulher, ignora por completo a sede de
sangue no estupro, o prazer da violação e da destruição. Uma estética
e uma erótica da profanação - o mal pelo mal, o aguçamento dos
sentidos pela crueldade e a tortura - foram documentadas por Sade,
Baudelaire e Huysmans. As mulheres podem ser menos inclinadas a tais
fantasias, porque lhes falta fisicamente o equipamento para a
violência sexual. Elas não conhecem a tentação de invadir à força o
santuário de outro corpo.

Nosso conhecimento dessas fantasias é ampliado pela pornografia,
motivo pelo qual se deve tolerá-la, embora se possa restringir
razoavelmente sua exibição pública. A imaginação não pode e não deve
ser policiada. A pornografia mostra-nos o coração da natureza
daimônica, aquelas forças eternas em ação por baixo e além da
convenção social. Não se pode separar a pornografia da arte; as duas
interpenetram-se, muito mais do que tem admitido a crítica humanista.
Geoffrey Hartman diz com razão: "A grande arte é sempre ladeada por
suas irmãs escuras, a blasfêmia e a pornografia".\footnote{6} O
próprio _Hamlet_, obra fundamental do Ocidente, esta repleto de
lascívia. Os criminosos em toda a história, de Nero e Calígula a
Gilles de Rais e aos comandantes nazistas, jamais precisaram de
pornografia para estimular sua refinada e horrenda inventividade. Para
isso basta a diabólica mente humana.

[br]

Felizes as épocas em que o casamento e a religião são fortes. O
sistema e a ordem nos protegem do sexo e da natureza. Infelizmente,
vivemos numa época em que o caos do sexo se escanearou. G. Wilson
Knight observa: "O cristianismo surgiu originalrnente como um
derrubador de tabus, em nome de uma humanidade sagrada; mas a Igreja a
que deu origem ainda não conseguiu cristianizar a magia pagã do
sexo".\footnote{7} O erro mais gritante da historiografia tem sido a
afirmação de que o judeu-cristianismo derrotou o paganismo. O
paganismo sobreviveu nas mil formas de sexo, arte, e agora nos
modernos meios de comunicação de massa. O cristianismo fez um ajuste
atrás do outro, absorvendo en-

34
  
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% (find-personassexuais1page (+ -12 35))
% ok
%
genhosamente a oposição (como durante o Renascimento italiano) e
diluindo seu dogma para acompanhar a mudança dos tempos. Mas chegou-se
a um ponto crítico. Com o renascimento dos deuses nas idolatrias de
massa da cultura popular, com a erupção de sexo e violência em todos
os cantos dos ubíquos meios de comunicação, o judeu-cristianismo
enfrenta seu mais sério desafio desde o confronto da Europa com o
islamismo na Idade Média. O paganismo latente da cultura ocidental
ressurgiu com toda a sua daimônica vitalidade.

O paganismo jamais foi a desenfreada licenciosidade sexual pintada
pelos missionários do jovem e aguerrido cristianismo. Apontar como
típicas do paganismo as orgias dos entediados aristocratas romanos
seria tão injusto como apontar como típicos do cristianismo os pecados
de padres renegados ou as farras do papa Alexandre VI no Vaticano. A
verdadeira orgia era uma cerimônia dos cultos maternos crônicos, em
que havia tanto sexo como derramamento de sangue. O paganismo
reconhecia, cultuava e temia o daimonismo da natureza, e limitava a
expressão sexual com fórmulas rituais. O cristianismo foi um
desenvolvimento da religião de mistério dionisíaca, que paradoxalmente
tentava eliminar a natureza em favor de um outro mundo transcendental.
O único contato com a natureza que o cristianismo permitia a seus
seguidores era o sexo santificado pelo casamento. A natureza ctônica,
encarnada em grandes figuras de deusas, era a mais formidável
adversária do cristianismo. Esta religião funciona melhor quando
instituições reverenciadas, como o monasticismo ou o casamento
universal, canalizam a energia sexual em direções positivas. A
civilização ocidental beneficiou-se enormemente da sublimação que o
cristianismo impôs ao sexo. O cristianismo funciona menos quando o
sexo é constantemente estimulado de outros lados, como acontece agora.
Nenhuma religião transcendental pode competir com a espetacular
proximidade e concretude dos carnais meios de comunicação. Nossos
olhos e ouvidos são afogados numa torrente sensual.

A identidade ritual pagã de sexo e violência é a principal contenção
dos meios de comunicação ao complacente rousseauísmo dos humanistas
modernos. Os meios de comunicação comerciais, em resposta direta à
preferência popular, contornam os censores liberais que desfrutaram
tão longo controle sobre a cultura do livro. No cinema, na música
popular e nos comerciais, vemos todos os mitos daimônicos e os
estereótipos sexuais do paganismo, que os movimentos de reforma, do
cristianismo ao feminismo, jamais puderam erradicar. Os sexos vivem
eternamente em guerra. O sexo masculino tem um elemento de ataque, de
busca e destruição, em que sempre haverá um potencial de estupro. O
sexo feminino tem um elemento de captura, uma manipulação subliminar
que leva à infantilização física e emocional do homem. Freud observa,
a propósito de sua teoria da cena primal, que a criança, ao escutar os
pais fazendo sexo, pensa que o homem está ferindo a mulher, e que os
gritos de prazer da mulher são gritos de dor. A maioria dos homens
simplesmente grunhe, na melhor das hipóteses. Mas os estranhos gritos
sexuais da mulher vêm diretamente do ctônio. É a bacante que vai
estraçalhar sua vítima. O sexo é um misterioso momento

35 
  
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% (find-personassexuais1page (+ -12 36))
% ok
%
de ritual e magia, em que ouvimos o bárbaro uivo de triunfo da vontade
da mulher. Uma dominação dissolve-se noutra. A dominada torna-se
dominadora.

Toda mulher menstruada ou grávida é uma pagã e primitiva lançada de
volta às distantes praias oceânicas das quais jamais evoluímos
inteiramente. Nas ruas de toda cidade, prostitutas, a mais velha
profissão do mundo, destacam-se como um repúdio à moralidade sexual.
São a face daimônica da natureza, iniciadas dos mistérios pagãos. A
prostituição não é só uma indústria de serviço, enxugando o excesso de
demanda masculina, que sempre supera a oferta de mulheres. A
prostituição testemunha o poder amoral da luta do sexo, que a religião
jamais pôde deter. As prostitutas, os pornógrafos e seus clientes são
saqueadores na floresta da noite arcaica.

Que a natureza atua diferentemente sobre os sexos, está provado pelo
caso do homossexualismo feminino e masculino moderno, ilustrando como
os sexos funcionam separadamente fora da convenção social. Resultado,
segundo estatísticas de freqüência sexual: satiríase masculina e
recolhimento feminino. O homossexual masculino faz sexo com mais
freqüência que seu correspondente heterossexual; a homossexual
feminina menos que a sua, uma polarização radical dos sexos numa única
série de inconformismo sexual partilhado. A agressão e a luxúria
masculinas são os fatores energizantes da cultura. São os instrumentos
de sobrevivência dos homens na vastidão da natureza fêmea.

O antigo "dois pesos, duas medidas" deu aos homens uma liberdade
sexual negada as mulheres. As feministas marxistas reduzem o histórico
culto da virgindade da mulher ao valor dela como propriedade, seu
valor no mercado masculino do casamento. Eu diria ao contrário que
havia e há uma base biológica para esse duplo padrão. As primeiras
informações médicas sobre a doença que mata homossexuais masculinos
indicavam que os homens que corriam mais riscos eram aqueles que
haviam tido mil parceiros durante a vida. Incredulidade. Quem seriam
tais pessoas? Ora, veio-se a saber, todo mundo que a gente conhecia.
Homens sérios, bondosos, educados, não vagabundos ou marginais. Que
abismo divide os sexos! Abandonemos o fingimento da igualdade sexual e
admitamos a terrível dualidade dos sexos.

O sexo masculino é romance de busca, exploração e especulação. A
promiscuidade dos homens pode baratear o amor, mas aguça o pensamento.
Promiscuidade em mulher é doença, um vazamento de identidade. A mulher
promíscua contamina-se a si mesma e é incapaz de idéias claras. Rompeu
a integridade ritual de seu corpo. É do maior interesse da natureza
estimular o macho dominante a disseminar indiscriminadamente sua
semente. Mas a natureza também lucra com a pureza da mulher. Mesmo na
mulher liberada ou lésbica, há um freio biológico sussurrando:
mantenha limpo o canal natal. Ao preservar-se judiciosamente, a mulher
protege um feto invisível. Talvez seja esse o motivo do arquetípico
horror (mais do que medo Asocializado) que muitas mulheres, de outro
modo ousadas, têm de aranhas e outros insetos rastejantes ligeiros. A
mulher resguarda-se porque o corpo feminino é um reservatório, um
trecho virgem de água parada, empoçada, onde o feto chega a termo. A
caça do homem e
  
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% (find-personassexuais1page (+ -12 37))
% ok
%
a fuga da mulher não são apenas um jogo social. O padrão duplo talvez
seja uma das leis orgânicas da natureza. romance de busca do sexo
masculino é uma guerra entre identidade e aniquilamento. A ereção é
uma esperança de objetividade, de poder para atuar como agente livre.
Mas no auge do sucesso masculino, a mulher está puxando o homem de
volta ao seu seio, bebendo e estancando a sua energia. Freud diz: "O
homem teme que sua força lhe seja tirada pela mulher, teme
contaminar-se com a feminilidade dela e depois mostrar-se
um_fracote".\footnote{8} A masculinidade de combater o efeminamento
dia a dia. A mulher e a natureza estão sempre prontas para reduzir o
homem a menino e bebê.

As operações do sexo são convulsivas, do intercurso à menstruação e ao
parto: tensão e distensão, espasmo, contração, expulsão, alívio. O
corpo é retorcido em inchação e abandono. Sexo não é o princípio do
prazer, mas a servidão dionisíaca do prazer-dor. Tanta coisa é uma
questão de _superar resistência_, no corpo ou no amado, que o estupro
será sempre um perigo presente. O sexo do homem é compulsão-repetição:
seja o que for que um homem escreva no comentário de suas projeções
falicas, tem de ser sempre reescrito. O homem sexual é o mágico
serrando a dama pela metade, mas a cabeça e a cauda da serpente sempre
vivem e tornam a juntar-se. A projeção é uma maldição masculina:
precisar sempre de alguma coisa ou alguém para tornar-se completo.
Essa das origens da arte e o segredo de sua dominação histórica pelos
homens. O artista é o homem que mais perto chegou de imitar a soberba
auto-suficiência da mulher. Mas ele precisa de sua arte, sua projeção.
O artista bloqueado, como Da Vinci, sofre a tortura dos danados. A
pintura mais famosa do mundo, a _Mona Lisa_, registra o
auto-satisfeito isolamento da mulher, seu ambíguo sorriso de gozação
da vaidade e desespero de seus muitos filhos.

Tudo o que é grande no Ocidente veio da disputa com a natureza. O
Ocidente, não o Oriente, testemunhou a assustadora brutalidade do
processo natural, o insulto ao espírito no pesado e cego rolar e
escorrer da matéria. Na perda do ego, encontrariamos não o amor nem
Deus, mas a sordidez primeva. Essa revelação coube historicamente ao
homem ocidental, que é puxado de volta à mãe oceânica por ritmos de
marés. Ê a seu ressentimento desse refluxo daimônico que devemos as
grandes construções de nossa cultura. O apolinismo, frio e absoluto, é
a sublime recusa do Ocidente. O apolíneo e uma linha masculina traçada
contra a desumanizante magnitude da natureza feminina.

Tudo se derrete na natureza. Julgamos ver objetos, mas nossos olhos
são lentos e parciais. A natureza desabrocha e definha em longa e
resfolegante respiração, subindo e descendo em movimentos de onda
oceânica. Uma mente que se abrisse inteiramente para a natureza, sem
preconceito sentimental, ficaria farta do grosseiro materialismo da
natureza, sua incansável superfluidade. Uma macieira carregadade de
frutos: que coisa mais pacífica, mais colorida. Mas ê só afastar do
olhar o o filtro do humanismo e tornar a olhar. Eis a natureza
espumando e borbulhando, as loucas bolhas espermáticas transbordando e
estourando naquela ronda inumana de desperdício, podridão e carnagem.
Das compactadas

37 
  
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% (find-personassexuais1page (+ -12 38))
% ok
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células brilhantes de ova de peixe aos esporos macios que as vagens
verdes ao explodirem despejam no ar, a natureza é um ninho de vespas
infectado de agressão e matança. Essa é a magia negra crônica que nos
contamina como seres sexuais; essa a identidade daimônica que o
cristianismo tão inadequadamente define como pecado original e acha
que pode lavar de nós. A mulher procriadora é o mais incômodo
obstáculo à reivindicação de catolicidade do cristianismo,
testemunhado por suas esperançosas doutrinas de Imaculada Concepção e
Parto Virgem. A procriatividade da natureza ctônica é um obstáculo a
toda a metafísica ocidental e a cada homem que busca identidade contra
a mãe. A natureza ê um fervilhante excesso de ser.

A arma mais eficaz contra o fluxo da natureza é a arte. Religião,
ritual e arte começaram como uma coisa só, e em toda arte ainda está
presente um elemento religioso ou metafísico. A arte, por mais
minimalista que seja, jamais é simples projeto. É sempre um
reordenamento ritualístico da realidade. O empreendimento artístico,
numa era coletiva estável ou numa era individualista instável, é
inspirado pela ansiedade. Todo tema localizado e cultuado pela arte é
ameaçado por seu oposto. A arte é um _incluir_ para _excluir_. É um
agrilhoamento da perpétua máquina de movimento que é a natureza. O
primeiro artista foi um sacerdote tribal lançando um sortilégio,
fixando a daimônica energia da natureza num momento de perpétua
imobilidade. A fixação está no âmago da arte, fixação como _stasis_ e
como obsessão. O pintor moderno que apenas traça uma linha sobre uma
página ainda tenta domar um aspecto incontrolável da realidade. A arte
é fascinante. Prega a platéia no assento, detêm os pés diante de um
quadro, fixa o livro à mão. A contemplação é um ato de magia.

Arte é ordem. Mas a ordem não é necessariamente justa, bondosa ou
bela. Pode ser arbitrária, dura e cruel. A arte nada tem a ver com
moralidade. Pode haver temas morais, mas são incidentais, apenas
fixando uma obra de arte num determinado tempo e lugar. Antes do
Iluminismo, a arte religiosa era hierática e cerimonial. Depois do
Iluminismo, a arte teve de criar seu próprio mundo, em que novos
rituais de formalismo artístico substituíram os universais religiosos.
A literatura neoclassicista inglesa do século XVIII demonstra que o
que atrai o artista é mais a ordem na moralidade do que a moralidade
na arte. Só os liberais utópicos se surpreenderam com o fato de os
nazistas serem _connoisseurs_ de arte. Sobretudo nos tempos modernos,
quando a grande arte foi empurrada para a periferia da cultura, é
evidente que a arte é agressiva e compulsiva. O artista faz arte não
para salvar a humanidade, mas para salvar-se a si mesmo. Toda
observação benevolente de um artista é uma nuvem de fumaça para
encobrir seus rastros, a trilha sangrenta de seu ataque à realidade e
a outros.

Arte é _temenos_, um lugar sagrado. Ê ritualmente limpa, um chão
varrido, a eira que foi o primeiro palco de teatro. O que entra nesse
espaço se transforma. Do bisonte da pintura rupestre aos astros de
cinema de Hollywood, os seres representados entram numa outra vida
cúltica, da qual talvez jamais tornem a sair. Estão enfeitiçados. A
arte é sacriñcial, voltando sua agressão inerente tanto contra o
artista quanto contra a representação. Nietzsche diz: "Quase tudo o
  
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% (find-personassexuais1page (+ -12 39))
% ok
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que chamamos de 'alta cultura' baseia-se na espiritualização da
_crueldade_"\footnote{9} Os intermináveis assassinatos e tragédias da
literatura estão lá para o prazer da contemplação, não como lição
moral. Seu status de ficção, transferido para um recinto sagrado,
intensifica nosso prazer, garantindo que a contemplação não pode
transformar-se em ação. Nenhuma investida de um espectador compadecido
pode evitar a fria inevitabilidade daquela cerimônia hierática,
reprisada ritualmente pelo tempo afora. O sangue que se derrama será
sempre derramado. O ritual na igreja ou no teatro é fixação amoral,
afastando a ansiedade pela formalização e paralisação da emoção. O
ritual da arte é a lei cruel da dor transformada em prazer.

A arte faz _coisas_. Eu já disse que não há objetivo na natureza, só a
terrível erosão da força natural, salpicando, dilapidando, triturando,
reduzindo toda matéria a fluido, à grossa sopa primal da qual brotam
novas formas, arquejantes por vida. Dioniso era identificado com
líquidos - sangue, seiva, leite, vinho. O Dionisíaco é a fluidez
crônica da natureza. Apolo, por outro lado, dá forma e contorno,
distinguindo um ser de outro. Todos os artefatos são apolíneos. A
fusão e a união são dionisíacas; a separação a a individuação,
apolíneas. Todo rapaz que deixa a mãe para tornar-se homem está
voltando o apolíneo contra o dionisíaco. Todo artista compelido para a
arte, que precisa de palavras ou imagens como outros necessitam
respirar, está usando o apolíneo para derrotar a natureza ctônica. No
sexo, os homens têm de mediar entre Apolo e Dioniso. Sexualmente, as
mulheres têm de permanecer oblíquas, opacas, aceitando o prazer sem
tumulto ou conflito. A mulher é um _temenos_ de seus próprios
mistérios obscuros. Genitalmente, o homem possui uma coisinha que tem
de viver mergulhando em dissolução dionisíaca - um negócio arriscado!
Fazer coisas, preservar coisas é fundamental para a experiência masculina.
O homem é fetichista. Sem seu fetiche, a mulher tornara a engoli-lo.

Daí o domínio da arte e da ciência pelo homem. O foco, a objetividade,
a concentração e projeção do home, que identifiquei com o ato de
urinar e ejacular, são suas ferramentas de sobrevivência sexual, mas
nunca lhe deram a vitória final. A ansiedade na experiência sexual
continua tão forte como sempre. homem tenta corrigir isso pelo culto
da beleza feminina. Está eroticarnente fixado nas "belas formas" da
mulher, nas esponjosas camadas de gordura maternal dos seios, quadris
e nádegas, que são, ironicamente, as partes mais aguadas e menos
estáveis de sua anatomia. O corpo ondulado da mulher reflete o mar
encapelado da natureza crônica. Concentrando-se nas belas formas,
fazendo da mulher um objeto sexual, o homem tem lutado para fixar e
estabilizar o pavoroso fluxo da natureza. Objetificação ê
conceitualização, a mais alta faculdade humana. Transformar pessoas em
objetos é uma das especialidades de nossa espécie. Jamais
desaparecerá, pois está entrelaçada com o impulso artístico e pode
ser-lhe idêntico. O objeto sexual é forma ritual imposta à natureza. É
um totem de nossa perversa imaginação.

A produção apolínea de coisas é a linha principal da civilização
ocidental, estendendo-se do antigo Egito ao presente. Toda tentativa
de reprimir esse as-

39 
  
</text><height>3506</height><width>2549</width><text_data><TextData><style>STYLE_NORMAL</style><line_space>0</line_space><angle>0</angle><language>pt</language><justification>0</justification><weight>WEIGHT_NORMAL</weight><face>Sans</face><letter_space>0</letter_space><size>643.0</size></TextData></text_data><y>0</y><x>0</x><type>1</type></DataBox></data_boxes><pixel_height>3506</pixel_height><resolution>(300, 300)</resolution><image_path>/tmp/camille_paglia_personas_sexuais_cap_1/0039.jpg</image_path><pixel_width>2549</pixel_width></PageData><PageData><data_boxes><DataBox><text>

% (find-personassexuais1page (+ -12 40))
% ok
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pecto de nossa cultura foi no fim derrotada. Primeiro o judaísmo,
depois o cristianismo voltaram-se contra a fabricação de ídolos
pagãos. Mas o cristianismo, de impacto maior que o judaísmo, tornou-se
a religião mais pejada de arte, mais dominada pela arte, do mundo. A
imaginação sempre remedia as falhas da religião. O objeto mais duro
que resultou da fabricação apolínea é a personalidade ocidental, o ego
fascinante, lutador, separatista, que entrou na literatura com a
_Ilíada_, mas, como pretendo mostrar, apareceu primeiro na arte
egípcia do Antigo Império.

O cristianismo, varrendo os encantos seculares do paganismo, tentou
tornar a espiritualidade básica. Mas, como seita combativa, terminou
reforçando a estrutura de ego absolutista do Ocidente. O herói
militante da Igreja medieval, o cavaleiro de armadura reluzente, é a
_coisa_ apolínea mais perfeita na história do mundo. Os livros de arte
precisam ser reescritos: há uma linha direta que vem da escultura
grega e romana, passa pela armadura medieval, e chega à ressurreição
do classicismo no Renascimento. Armas e armaduras não são artesanato,
mas arte. Trazem o peso simbólico da personalidade ocidental. A
armadura é a continuidade pagã no cristianismo medieval. Depois que o
Renascimento possibilitou a criação da arte sensual e idólatra do
classicismo, a linha pagã continuou com força impudente até hoje. A
idéia de que a tradição ocidental desmoronou após a Primeira Guerra
Mundial é uma das pequenas birras míopes do liberalismo. Sustentarei
que a alta cultura se tornou obsoleta pelo niilismo neurótico do
modernismo, e que a cultura popular é a grande herdeira do passado
ocidental. O cinema é o supremo gênero apolíneo, coisa criada e'
criador de coisas, uma máquina dos deuses.

O homem, conceitualizador e projetor sexual, tem dominado a arte
porque essa é sua resposta apolínea em direção à mulher, e para longe
dela. Um objeto sexual é alguma coisa a visar. O olho é a seta de
Apolo a seguir o arco de transcendência que vi no ato de urinar e
ejacular do homem. O olho ocidental é um projétil lançado para _além_,
para aquele deserto da condição masculina. Não por coincidência a
Europa foi a primeira a fazer armas de fogo com pólvora, que a China
inventara séculos antes, mas para a qual pouca utilidade encontrara. A
agressão e projeção fálicas são intrínsecas à conceitualização
ocidental. Seta, olho, canhão, cinema: o ígneo facho de luz do
projetor de cinema é o nosso moderno caminho de transcendência
apolínea. O cinema é a culminação do obsessivo impulso masculino,
mecanicista, na cultura ocidental. É um atirador apolíneo,
demonstrando a relação entre a agressão e a arte. Todo enquadramento
de imagem é uma limitação ritual, um recinto fechado. A tela de cinema
retangular segue visivelmente o modelo do quadro emoldurado
pósrenascentista. Mas toda conceitualização é um enquadramento.

A história das roupas pertence à história da arte, mas com demasiada
freqüência é encarada como um adjunto jornalístico feminino à
erudição. Não há nada de trivial na moda. Os padrões de beleza são
conceitualizações projetadas por cada cultura. Dizem-nos tudo. As
mulheres têm sido as mais vitimadas pela roda da moda em eterno
movimento, sujeitando seus pés ou colos a comandos

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% (find-personassexuais1page (+ -12 41))
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fantasmas. Mas a moda não é apenas mais uma opressão política a ser
acrescentada à litania feminista. Os padrões de beleza, criados pelos
homens, mas em geral consentidos pelas mulheres, limitam ritualmente a
arquetípica fascinação sexual das mulheres. A moda é uma
externalização da invisibilidade daimônica da mulher, seu mistério
genital. Põe diante do olho apolíneo do homem o que esse olho nunca
pode ver. A beleza é um congelamento de imagem apolíneo pára e
condensa o fluxo e a indeterminação da natureza. Permite ao homem agir
realçando a desejabilidade do que ele teme.

O poder do olho na cultura ocidental não foi plenamente apreciado ou
analisado. O asiático desvaloriza os olhos e transfere valor para o
terceiro olho místico, assinalado pelo ponto vermelho hindu na testa.
A personalidade é inautêntica no Oriente, que identifica o ego com o
grupo. A meditação oriental rejeita o tempo histórico. Temos uma
tradição religiosa paralela: os axiomas paradoxais dos místicos e
poetas orientais e ocidentais muitas vezes são indistinguíveis. O
budismo e o cristianismo concordam em ver o mundo material como
_samsara_, o véu da ilusão. Mas o Ocidente tem outra tradição, a pagã,
que culmina no cinema. O século XX não é a Era da Ansiedade, mas a Era
de Hollywood. O culto pagão da personalidade redespertou e domina toda
arte, todo pensamento. É moralmente vazio, mas ritualmente profundo.
Nós o adoramos pelo poder do olho ocidental. A tela de cinema e a de
televisão são seus recintos sagrados.

A cultura ocidental tem um olho errante. O sexo masculino é caça e
varredura: os rapazes penduram-se berrando de carros a buzinar, agindo
como basbaques com as moças que passam; homens que almoçam nas obras
em construção recorrem a toda a gama primitiva de assobios e estalos
animais. Por toda parte, a mulher bonita é examinada dos pés à cabeça
e importunada. E o símbolo último do desejo humano. O feminino é
aquilo-que-se-busca; recua além do nosso alcance. Daí haver sempre um
elemento feminino no rapaz bonito do homossexualismo masculino. O
feminino é o sempre fugidio, um reflexo prateado no horizonte.
Seguimos essa imagem com olhos anelantes: talvez esta, talvez esta
vez. A busca do sexo pode ocultar um sonho de libertar-se do sexo.
Sexo, conhecimento e poder estão profundamente embaralhados; não
podemos ter um sem os outros. O islamismo é sábio ao envolver de negro
as mulheres, pois o olho é a avenida de eros. As personalidades duras
e definidas da cultura ocidental sofrem de inflamação ocular. São tão
numerosas que jamais foram catalogadas, a não ser em nossa magnífica
arte do retrato. As personas sexuais ocidentais são núcleos de poder,
mas fizeram do erotismo um tormento. Desse tormento veio nossa
grandiosa tradição literária e artística. Infelizmente, não há como
separar o basbaque que assobia na rua do arrebatado visionário diante
de seu cavalete. Ao aceitar os dons da cultura, as mulheres talvez
tenham de aceitar o bicho dentro da maçã.

O judeu-cristianismo não conseguiu controlar o olho ocidental. Nossos
processos mentais formaram-se na Grécia e foram herdados por Roma,
cuja língua continua a ser a voz oficial da Igreja católica. A
pesquisa e a lógica intelectuais

41 
  
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% (find-personassexuais1page (+ -12 42))
% ok
%
são pagãs. Toda pesquisa é precedida por um olho errante; e assim que
o olho começa a vagar, não pode ser moralmente controlado. O judaísmo,
devido ao seu medo do olho, impôs um tabu à representação visual. O
cristianismo fez o mesmo, até derivar para o pictorialismo, a fim de
atrair as massas pagãs. O protestantismo começou como iconoclasmo, a
destruição das imagens da corrupta Igreja católica. O estilo
protestante estrito é uma igreja branca com janelas simples.
Afortunadamente, o catolicismo italiano mantém o mais vivido
pictorialismo, legado de um passado pagão que jamais se perdeu.

O paganismo depende do olhar. Baseia-se no exibicionismo cultural, no
qual se juntam o sexo e o sadomasoquismo. Os antigos mistérios
ctônicos jamais desapareceram das igrejas italianas. Círeos cadáveres
de santos envidraçados. Pedaços de ossos de braços em relicários
dourados. São Sebastião meio nu trespassado por flechas. Santa Luzia
segurando os próprios olhos num prato. Sangue, tortura, êxtase e
lágrimas. Esse sinistro sensacionalismo torna o catolicismo italiano a
cosmologia emocionalmente mais complexa da história religiosa. A
Itália acrescentou sexo e violência pagãos ao ascético credo
palestino. E daí para Hollywood, a moderna Roma pagã: foram o sexo e
violência pagãos que floresceram tão vividamente em nossos meios de
comunicação de massa. A câmera libertou a imaginação daimônica
ocidental. O cinema é _exibição sexual_, uma ostentação pagã. Trama e
diálogo são uma bagagem obsoleta de palavras. O cinema, o gênero que
mais exige do olhar, restaurou o exibicionismo cultural da Antigüidade
pagã. O espetáculo é um culto pagão do olho.

Não existe essa coisa de "mera" imagem. A cultura ocidental ergue-se
sobre relações perceptivas. Das altas projeções divinas do antigo
culto do céu à maquinaria criadora de celebridades da promoção
comercial americana, a identidade ocidental organizou-se em torno de
carismáticas personas sexuais de poder hierárquico. Todo deus é um
ídolo, literalmente uma "imagem" (_idolum_, em latim, do grego
_eidolon_). Imagem é visibilidade implícita. O visual é muito
subvalorizado na erudição moderna. A história da arte só alcançou uma
fração da sofisticação conceitual da crítica literária. A literatura e
a arte permanecem distintas. Embriagada de amor a si mesma, a crítica
superestimou imensamente a importância da linguagem para a cultura
ocidental. Não viu a eletrizante linguagem simbólica das imagens.

A guerra entre o judeu-cristianismo e o paganismo ainda está sendo
travada nas últimas ideologias das universidades. Freud, como judeu,
talvez tenha tendido em favor da palavra. Em minha opinião, a teoria
freudiana enfatiza demais o caráter lingüístico do inconsciente, e
menospreza o deslumbrante pictorialismo cinematográfico da vida dos
sonhos. Além disso, as discussões dos franceses sobre as limitações
racionalistas de sua própria cultura foram ilegitimamente transferidas
para a Inglaterra e para os Estados Unidos, com resultados medíocres.
A língua inglesa foi criada por poetas, um empreendimento de
quinhentos anos de emoção e metáfora, o mais rico diálogo interior da
literatura mundial. Os modelos retóricos franceses são demasiado
estreitos para a tradição inglesa. A mais perniciosa das importações
francesas é a idéia de que não
  
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% (find-personassexuais1page (+ -12 43))
% ok
%
há pessoa por trás de um texto. Haverá alguma coisa _mais_ afetada,
agressiva e inexoravelmente concreta do que um intelectual parisiense
por trás de seu bombástico texto? O parisiense é um provinciano
quando pretende falar para o universo. Por trás de todo livro há uma
certa pessoa, com uma certa história. Personalidade é a realidade
ocidental. É uma condensação visível do sexo e da psique fora do
âmbito da palavra. Nós a conhecemos pela visão apolínea, o cinema
pagão da percepção ocidental. Não tiremos do olho para dar ao ouvido.

A adoração da palavra tornou difícil para os eruditos o trato com a
mudança cultural radical de nossa era de comunicação de massa. Os
acadêmicos vivem travando uma batalha de retaguarda. A tradicional
crítica de gêneros está moribunda. As humanidades têm de abandonar
seus feudos insulares e começar a pensar em termos de _imaginação_, um
poder que atravessa os gêneros e une a grande arte e a arte popular, o
nobre e o mendigo. Não há declínio nem tragédia no triunfo dos meios
de comunicação de massa, só uma mudança da palavra para a imagem - em
outras palavras, um retorno ao pictorialismo pagão pré-Gutenberg,
pré-protestante, da cultura ocidental.

Que a cultura popular reclama o que a alta cultura veta, fica claro no
caso da pornografia. A pornografia é puro imagismo pagão. Do mesmo
modo como um poema é expressão verbal ritualmente limitada, a
pornografia é expressão visual ritualmente limitada do daimonismo do
sexo e da natureza. Cada tomada, cada ângulo da pornografia, por mais
tolos, pervertidos ou doentios que sejam, é mais uma tentativa de
_tudo captar_ da enormidade da natureza crônica. Pornografia é arte?
Sim. Arte é contemplação e conceitualização, o exibicionismo ritual
dos mistérios primitivos. A arte extrai ordem da brutalidade ciclônica
da natureza. A arte, como eu disse, está cheia de crimes. A feiúra e a
violência da pornografia refletem a feiúra e a violência da natureza.

A franqueza da pornografia criada pelo homem torna visível o que ê
invisível, a internalidade crônica da mulher. Tenta lançar luz
apolínea na escuridão da mulher, causadora de ansiedade. O
contorcionismo vulgar da pornografia é o enredamento serpentino da
natureza medusina. A pornografia é a imaginação em tensa ação teatral;
suas violações são um protesto contra as violações de nossa liberdade
pela natureza. A proibição da pornografia, corretamente buscada pelo
judeu-cristianismo, seria uma vitória sobre o obstinado paganismo do
Ocidente. Mas a pornografia não pode ser proibida, só lançada na
clandestinidade, onde sua carga ilícita será realçada. O pictorialismo
amoral da pornografia viverá eternamente como uma repulsa ao culto
humanista do ato redentor. As palavras não podem salvar o fluxo cruel
da natureza pagã.

O olho ocidental faz _coisas_, ídolos da objetificação apolínea. A
pornografia incomoda muita gente bem-intencionada porque isola o
elemento voyeurista presente em toda arte, especialmente no cinema.
Todas as personas da arte são objetos sexuais. A reação emocional do
espectador ou leitor é inseparável da reação erótica. Como disse,
nossas vidas como seres físicos são um _continuum_ dionisíaco de
prazer-dor. A todo momento estamos mergulhados no sensório, mesmo
durante o sono. Excitação emocional é excitação sensual; excitação
sensual é ex-

43 
  
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% (find-personassexuais1page (+ -12 44))
% ok
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citação sexual. A idéia de que se pode separar emoção e sexo é uma
ilusão cristã, uma das estratégias mais engenhosas, mas no fim
ineficaz, na antiga campanha do cristianismo contra a natureza pagã.
Agape, amor espiritual, pertence a eros, mas fugiu de casa.

Somos _voyeurs_ nos perímetros da arte, e há uma sensualidade
sadomasoquista em nossas reações a ela. A arte é um escândalo,
literalmente um "obstáculo", a todo moralismo, seja na direita cristã
ou na esquerda rousseauísta. Pornografia e arte são inseparáveis,
porque há voyeurismo e voracidade em todas as nossas sensações como
seres que vêem e sentem. A mais completa exploração dessas idéias é o
épico renascentista _The faerie queene_ [<]A rainha fada[>], de Edmund
Spenser. Neste poema, que prefigura o cinema por suas radiosas
projeções apolíneas, esta copiosamente documentada a latência
voyeurística e sadomasoquista na arte e no sexo. A percepção ocidental
é um teatro daimônico de surpresa ritual. Podemos não gostar do que
vemos quando olhamos o negro espelho da arte.

Objeto sexual, obra de arte, personalidade: a experiência ocidental é
celular e divisiva. Impõe um gráfico de espaços demarcados à
continuidade e fluxo da natureza. Fizemos demarcações apolíneas que
funcionam como domínios rituais contra a natureza; daí nossos
complexos códigos criminais e nossa elaborada erótica de transgressão.
A fraqueza nas criticas radicais ao sexo e à sociedade é que não
reconhecem que o sexo precisa de cadeias rituais para controlar seu
daimonismo, e, segundo, que as repressões da sociedade _aumentam_ o
prazer sexual. Não há nada menos erótico do que uma colônia de
nudismo. O desejo intensifica-se com limitações rituais. Daí a
máscara, o arnês e as correntes do sadomasoquismo.

As células ocidentais de santidade e criminalidade são um avanço
cognitivo na história humana. Nossos mitos fundamentais são Fausto,
que se tranca em seu gabinete para ler livros e decifrar o código da
natureza, e Don Juan, que faz uma guerra de prazer e conta suas
conquistas por número apolíneo. Os dois são egos celulares, sedutores
e conhecedores criminosos, nos quais se fundem o sexo, o pensamento e
a agressão. Essa célula separada da natureza é nosso cêrebro e olho.
Nossas duras personalidades são projeções imagísticas do córtex
superior apolíneo. As personas são idéias visíveis. Todas as
expressões faciais e posturas teatrais, presentes nos animais
primatas, são sombras passageiras de personas. Enquanto o decoro
japonês limita as expressões faciais, a arte ocidental desde a era
helenística registrou toda permutação de ironia, ansiedade, flerte e
ameaça. A dureza de nossas personalidades produziu a vulnerabilidade
do Ocidente à decadência. Tensão leva à fadiga e ao colapso, "últimas"
fases de história, em que floresce o sadomasoquismo. Como vou mostrar,
a decadência é uma _doença do olho_, uma intensificação sexual do
voyeurismo artístico.

As _coisas_ apolíneas do sexo e da arte ocidentais alcançam sua
glorificação econômica no capitalismo. Nos últimos quinze anos, as
teorias marxistas de literatura têm gozado de crescente voga. Ter
consciência do contexto social da arte parece implicar automaticamente
orientação marxista. Mas é possível uma
  
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% (find-personassexuais1page (+ -12 45))
% ok
%
teoria que seja ao mesmo tempo de vanguarda _e_ capitalista. O
marxismo foi uma das progênies de Rousseau no século XIX, energizada
pela fé na perfectibilidade do homem. Sua crença em que as forças
econômicas constituem a dinâmica básica da história é naturismo
romântico disfarçado. Quer dizer, esboça um crescente movimento de
onda no contexto material da vida humana, mas tenta negar o perverso
daimonismo desse contexto. O marxismo é a mais sombria das formações
de ansiedade contra o poder das mães crônicas. Sua influência na
historiografia moderna tem sido excessiva. A teoria histórica do
"grande homem" não era tão simplista quanto se diz; mal nos
recuperamos de uma guerra mundial em que essa teoria se revelou
perversamente verdadeira. Um homem _pode_ mudar o curso da história,
para o bem ou para o mal. O marxismo é uma fuga à magia da persona e à
mística da hierarquia. Distorce o caráter da cultura ocidental, que se
baseia no poder carismático da pessoa. O marxismo só pode funcionar em
sociedades pré-industriais de populações homogêneas. Ê só elevar o
padrão de vida, e o variegado motim de individualismo irromperá. A
personalidade e a arte, que o marxismo teme e censura, ricocheteiam de
toda tentativa de reprimi-las.

O capitalismo, ostentoso e cúpido, tem sido inerente à estética
ocidental desde o antigo Egito. É o misticismo e o fascínio das
_coisas_, que assumem uma personalidade própria. Como sistema
econômico, está na linha darwiniana de Sade, não de Rousseau. A
sobrevivência capitalista do mais capaz já está presente na _Ilíada_.
As personas sexuais ocidentais chocam-se de dia e de noite. Os
reluzentes guerreiros revestidos de bronze de Homero são as latas de
sopa apolíneas que se amontoam nos iluminados templos de nossos
supermercados e competem por atenção na televisão. O Ocidente
objetifica pessoas e personaliza objetos. A pululante publicidade dos
produtos capitalistas é uma correção apolínea da natureza. As marcas
comerciais são células territoriais da identidade ocidental. Nossos
reluzentes automóveis cromados, como nossos exércitos de caixas e
latas de supermercado, são extrapolações da dura, impermeável
personalidade ocidental.

Os produtos capitalistas são outra versão das obras de arte que
inundam a cultura ocidental. A pintura emoldurada portátil surgiu no
nascimento do comércio moderno, no início de Renascimento. Capitalismo
e arte têm-se desafiado e alimentado mutuamente desde então. O
capitalista e o artista são tipos paralelos: o artista é exatamente
tão amoral e aquisitivo quanto o capitalista, e igualmente hostil aos
competidores. O fato de, na era do príncipe mercador, as obras de arte
serem mascateadas e vendidas como cachorro-quente, apóia meu
argumento, mas não é fundamental para ele. A cultura ocidental é
animada por um materialismo visionário. O formalismo apolíneo roubou
da natureza para fazer um romance de _coisas_, duras, reluzentes,
grosseiras e voluntariosas.

A rede de distribuição capitalista, uma complexa cadeia de fábrica,
transporte, depósito e pontos-de-venda, é um dos maiores feitos
masculinos na história da cultura. É um circuito apolíneo, com a
rapidez do raio, de aliança masculina. Uma das irritantes reações
automáticas do feminismo é seu desdém de

45 
  
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% (find-personassexuais1page (+ -12 46))
%
bom-tom pela "sociedade patriarcal", a que jamais se atribui alguma
coisa de bom. Mas foi a sociedade patriarcal que me libertou a mim
como mulher. Foi o capitalismo que me proporcionou o lazer para me
sentar a esta mesa e escrever este livro. Vamos parar de ser tacanhas
em relação aos homens e reconhecer livremente os tesouros que a
obsessividade deles despejou na cultura.

Podíamos fazer um catálogo épico das conquistas masculinas, das
estradas pavimentadas, do encanamento das casas e das máquinas de
lavar aos óculos, antibióticos e fraldas descartáveis. Desfrutamos de
leite e carne frescos, sadios, e legumes e frutas tropicais em cidades
cobertas de neve. Quando atravesso a ponte George Washington ou
qualquer das grandes pontes dos Estados Unidos, penso: foram os
_homens_ que fizeram isso. A construção é uma sublime poesia
masculina. Quando vejo um gigantesco guindaste passando numa carreta,
paro com respeito e reverência, como se faria com uma procissão. Que
poder de concepção, que grandiosidade: esses guindastes nos ligam ao
antigo Egito, onde a arquitetura monumental foi imaginada e realizada
pela primeira vez. Se se tivesse deixado a civilização nas mãos da
mulher, ainda estaríamos morando em cabanas de palha. A mulher
contemporânea que usa um capacete de operário simplesmente entra num
sistema conceitual inventado pelos homens. O capitalismo é uma forma
de arte, uma invenção apolínea para rivalizar com a natureza. É
hipocrisia das feministas e dos intelectuais desfrutarem os prazeres e
con! veniências do capitalismo, fazendo ao mesmo tempo pouco dele. Até
mesmo o Walden de Thoureau foi apenas uma experiência de dois anos.
Todos os que nasceram no capitalismo incorreram em dívida com ele. Dai
a César o que é de César.

A dialética pagã de apolíneo e dionisíaco era extensamente abrangente
e precisa quanto a mente e a natureza. O amor cristão é tão carente da
polaridade emocional dessa dialética que foi preciso inventar o Diabo,
para concentrar o ódio e a hostilidade humanos. A psicologia
cristianizada do rousseauísmo levou à tendência dos liberais ao mau
humor ou à depressão diante das tensões políticas, guerras e
atrocidades que contradizem diariamente suas suposições. Pode ser que,
quanto mais sejamos sensibilizados pela leitura e a educação, mais
tenhamos de reprimir os fatos da natureza ctônica. Mas a insuportável
dicotomia feminista entre sexo e poder deve acabar. Assim como os
ódios num julgamento de divórcio expõem a face negra por baixo da
máscara do amor, também a verdade sobre a natureza se revela durante
as crises. As vítimas de tufões e furacões falam instintivamente na
"fúria da Mãe Natureza" - quantas vezes ouvimos essa expressão na
televisão, enquanto a câmera acompanha sobreviventes desorientados que
percorrem os destroços de casas e cidades. No inconsciente, todos
sabem que Jeová jamais obteve controle dos selvagens elementos.
Natureza ê Pandemônio, um Dia de Todos os Demônios.

Não há acidentes, só a natureza se impondo. Mesmo a bomba apenas
libera energia que a natureza pôs ali. A guerra nuclear seria apenas
uma fagulha na grandiosidade do espaço. Tampouco pode a radiação
"alterar" a natureza: ela a absorverá completamente. Depois da bomba,
a natureza pegará as cartas

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</text><height>3506</height><width>2549</width><text_data><TextData><style>STYLE_NORMAL</style><line_space>0</line_space><angle>0</angle><language>pt</language><justification>0</justification><weight>WEIGHT_NORMAL</weight><face>Sans</face><letter_space>0</letter_space><size>647.0</size></TextData></text_data><y>0</y><x>0</x><type>1</type></DataBox></data_boxes><pixel_height>3506</pixel_height><resolution>(300, 300)</resolution><image_path>/tmp/camille_paglia_personas_sexuais_cap_1/0046.jpg</image_path><pixel_width>2549</pixel_width></PageData><PageData><data_boxes><DataBox><text>


% (find-personassexuais1page (+ -12 47))
%
que derrubamos, embaralhará e recomeçará seu jogo. Está sempre jogando
paciência consigo mesma.

O amor ocidental tem sido ambivalente desde o começo. Já com Safo (600
a.C.), ou mesmo antes na lenda épica de Helena de Tróia, a arte
registra a força da atração e hostilidade nesse perverso fascínio que
chamamos de amor. Há um magnetismo erótico no Ocidente, devido à
dureza da personalidade ocidental: o erotismo é um campo de força
elétrico entre máscaras. A busca moderna de auto-realização não levou
à felicidade sexual, porque as afirmações de individualidade apenas
liberam o caos amoral da libido. A liberdade é a mais superestimada
das idéias modernas, originária da rebelião romântica contra a
sociedade burguesa. Mas só _em_ sociedade se pode _ser_ um indivíduo.
A natureza está à espera, nas portas da sociedade, para nos dissolver
em seu seio ctônico. Fora com os estereótipos, proclama o feminismo.
Mas os estereótipos são as estonteantes personas sexuais do Ocidente,
os veículos do ataque da arte à natureza. No momento em que há
imaginação, há mito. Podemos ter de aceitar uma divisão ética entre
imaginação e realidade, tolerando na arte horrores, estupros e
mutilações que não toleraríamos na sociedade. Pois a arte é nossa
mensagem do além, dizendo o que a natureza prepara. Não o sexo, mas a
crueldade, é a grande questão esquecida ou suprimida na agenda
humanistica moderna. Devemos honrar o ctônio, mas não necessariamente
nos curvar a ele. Em _The rape of the lock_ [<]O rapto do cacho[>],
Pope recomenda o bom humor como única solução para a guerra dos sexos.
O mesmo se aplica ã nossa escravização pela natureza ctônica. Devemos
aceitar nossa dor, mudar o que pudermos, e rir do resto. Mas vejamos a
arte como ela é. Desde a mais remota Antigüidade, a arte ocidental tem
sido um desfile de personas sexuais, emanações da mente ocidental
absolutista. A arte ocidental é um cinema de sexo e sonhos. A arte é a
forma que luta para despertar do pesadelo da natureza.

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