Warning: this is an htmlized version!
The original is here, and the conversion rules are here. |
% \section*{0. Feminismos} \mysection{sororidade}{Sororidade} \mydate{2015aug02} Tem definições que são importantes não em si, mas pelo uso que se fará da definição que for escolhida como ``certa''. As trans e as feministas ficam brigando, muito, pela definição de ``mulher'', que, pelo que eu entendo, determina: % \begin{itemize} \item Quem a gente vai considerar ``uma de nós'' \item Quem a gente vai considerar oprimida e não opressor \item Quem a gente vai considerar digna de cuidado mesmo que esteja agressiva e surtando \item Quem a gente vai considerar bem-vinda nos nossos grupos \end{itemize} O que acaba sendo resumido - porque as pessoas precisam de expressões curtas - em: % \begin{itemize} \item Quem a gente vai considerar digna de sororidade. \end{itemize} A briga sobre uso de banheiros - as trans devem poder usar banheiros femininos, que são espaços seguros, ou têm que usar os banheiros masculinos, onde os ômis acham divertido bater e estuprar quem quiserem? - tem ficado bem visível, e ela em geral é traduzida numa outra questão: {\it quem é mulher?} Confesso que eu acho que responder ``quem pode usar o banheiro feminino'' com ``quem é mulher, ué!'' me parece um tiro no pé - e acho que se a gente pensa em termos de {\it espaços seguros} e {\it comportamentos esperados (pra manter aquele espaço seguro)} tudo fica bem mais claro. \mysection{limites-da-sororidade}{Limites da sororidade} \mydate{2015oct18} Num grupo feminista do qual eu participo - ao vivo! - às vezes, teve um dia em que um dos assuntos principais foi uma garota que tinha ido como convidada umas semanas antes, ficou a reunião inteira calada observando, e depois pegou posts, que deveriam ser privados, da ``versão Facebook'' do grupo, e fez posts públicos ridicularizando-os. Tava todo mundo P* da vida com ela, e ninguém fez nenhuma fala consistente defendendo essa garota e dizendo que coitada, ela foi enganada pelo patriarcado, devemos salvá-la e perdoá-la 100\%. Deixa eu comparar isso com o que acontece em grupos trans. Um tema recorrente neles é: as mulheres trans têm que poder usar os banheiros femininos, mas umas mulheres cis ficam dizendo que claro que não, é absurdo deixar esses homens vestidos de mulher entrarem nos nossos banheiros, eles querem nos espiar e nos estuprar... ...aí as trans dizem: ``esse medo é ridículo, é transfobia'', ignorando que os lésbicos barbados desconstruindo gênero da p.\pageref{lesbicos} são ``trans'', ignorando que pra algumas radicais até um olhar masculino inconveniente é ``estupro'', e estendendo a ``sororidade trans'' pra casos demais. % Pras feministas mais radicais até uma cantada de rua é estupro. \mysection{homens-podem-ser-feministas}{Homens podem ser feministas?} \mydate{2015sep03} Uma pergunta recorrente em grupos feministas é: ``homens podem ser feministas?''... É engraçado como muita gente tenta respondê-la como se ela fosse uma pergunta de sim ou não, ao invés de vê-la como uma pergunta-provocação que leva a discussões bem ricas e que só se {\it disfarça} de pergunta de sim ou não. Tem muita coisa que a gente só consegue contar pra pessoas com vivências parecidas com as nossas, em situações nas quais a gente vai ser escutado, e em ambientes seguros. Pra mim um ambiente com babacas como o cara da seção \ref{dividir}, que acham ridículo {\it não sacanear} os outros, é exatamente o oposto de um ambiente seguro. Outro dia, num chat com uma amiga, eu propus que das próximas vezes ela tentasse descrever com mais detalhes os casos que ela conhece de homens que querem ``ser feministas''. Eu consigo imaginar alguns - por exemplo, o cara que quer ser reconhecido como ``feminista'' pra isso ser um selo de aprovação, um crachá que permita a ele circular por certos ambientes e ser considerado ``seguro'' e ''legal''... mas será que ele vai saber se retirar de espaços que deveriam ser só pra pessoas com certas vivências muito dolorosas e muito diferentes das dele? \mysection{onibus}{Ônibus} \mydate{2015oct18} Achei que este texto\footnote{\url{https://www.facebook.com/codpie/posts/10207875283139105}}, postado há poucos dias atrás, poderia ter gerado discussões interessantíssimas - {\it se a autora tivesse escrito o final dele com mil vezes mais cuidado e lucidez}... ela conta de um dia em que ela estava num ônibus, subiu uma senhora vendendo trufas, e aí o cara sentado do lado dela comprou várias e deu uma pra ela, de um jeito tão simpático e sem esperar nada em troca que ela não teve como não aceitar, e passou o dia feliz. Bom, eu devo ter lido o texto aplicando mais o ``Principle of Charity\footnote{\url{http://philosophy.lander.edu/oriental/charity.html}}'' do que a maioria das outras pessoas, porque achei que ele podia, e devia, ter gerado uma discussão bem interessante... É simplista achar que todos os homens são opressores do mesmo jeito e no mesmo grau, que todos os homens se beneficiam do machismo do mesmo jeito e no mesmo grau, que todos os gestos de gentileza masculinos são igualmente perigosos e carregam exatamente as mesmas segundas intenções por trás; e, bom, já que existem homens que compactuam mais com o machismo e outros que compactuam menos, deve ser possível pelo menos {\it imaginar} homens que combatem o machismo e conversar sobre como eles, aham, ``seriam''; e, dentre eles, uns vão ser mais ingênuos e outros menos... e, caramba, eu tenho {\it certeza} de que os homens não-ingênuos que estão tentando combater o machismo fazem o possível pra manter o coração aberto (seção \ref{coracao}) e pra serem transparentes e verdadeiros sempre que dá, e que eles são atentos aos efeitos de pequenos gestos e atitudes... e imagino que eles às vezes se arrisquem a ser gentis com mulheres cis héteros, que é algo que eu em geral não me atrevo a fazer porque eu fico em pânico só de pensar que podem achar que eu tou cantando alguém. \mysection{credito}{Crédito} \mydate{2015nov08} Meu pai era sobrevivente de campo de concentração. Deixa eu copiar aqui um trecho do discurso\footnote{\url{http://anggtwu.net/haz.html}} que eu preparei pra cerimônia de homenagem feita 30 dias depois da morte dele. \begin{quote} O meu pai dizia que o Holocausto era tão pior do que qualquer outra coisa que perto dele qualquer outra atrocidade, passada, presente ou futura, perdia a importância. E isso era muito opressor, porque queria dizer que o mundo tinha uma dívida infinita com ele - ele podia fazer qualquer coisa, podia explodir a qualquer hora, pra descarregar coisas que aliás ele nem entendia, e ele seria sempre desculpado. E isso fazia todo o sentido, mas era insuportável. Eu levei 30 anos pra conseguir lidar abertamente com isso - e foi da seguinte forma: ``ele tinha um crédito gigantesco por ter passado pelo que passou. Mas esse crédito não é infinito, e agora, depois de décadas, ele acabou''. E esse corte era algo bem mais pesado do que parece - era algo inadmissível, pra todo mundo. Eu me dispunha a ser considerado um monstro, por ele, pela minha família, pelos amigos dele, talvez até pelos meus amigos - a gente não se recusa a pagar a nossa dívida com a família - a dívida de cuidar de quem cuidava da gente - impunemente. Então eu não pediria mais ajuda a nenhuma dessas pessoas. Então essa foi uma das situações na minha vida nas quais eu decidi sacrificar a minha respeitabilidade, todo um grupo grande de contatos, toda uma rede social - a rede de proteção que a gente tem por default quando nasce numa certa classe, com um ou dois dos nossos pais sendo judeus - \end{quote} Eu ia terminar o discurso olhando nos olhos de todo mundo da platéia e dizendo que agora a gente já tem boas condições pra pensar sobre as atrocidades passadas e as atuais; sobre como fica quem sobrevive a elas; sobre {\it reação histérica a atrocidades}; sobre tentar esconder memórias dolorosas embaixo do tapete pra gente conseguir fazer cara de que está tudo bem; e {\it sobre o que a gente pode fazer pra não ser detestado} - mas eu acabei boicotando a cerimônia e não indo nela. \medskip O meu pai ``podia'' ser grosso, estúpido e paranóico sempre que quisesse - mas, repara, esse ``podia'' tem vários níveis e vários sentidos possíveis - ``vão cuidar dele como de alguém querido que está em desespero'', ``as pessoas vão entendê-lo'', ``as pessoas vão ajudá-lo'', ``ninguém vai ficar magoado com ele ou constrangido pelo que ele fizer''... ou então: ``não vai ser demitido do emprego'', ``vai ter atenuantes se criar uma briga e for parar na polícia''... ou: ``não vai levar reprimendas em público'', ``vai ser tolerado'', e ``os amigos vão se afastar em silêncio''. O que acabou acontecendo com ele foi bem próximo de ``os amigos vão se afastar em silêncio''. \medskip Quando eu vejo pessoas apontando transfobia, homofobia, racismo, ma\-chis\-mo, etc em todo lugar eu penso nisso. Elas {\sl podem} ver transfobia homofobia racismo machismo etc em todo lugar, mas será que o efeito disso é o que elas querem? Elas vão acabar se isolando, e será que vale a pena? Pra mim é importante a gente conquistar aliados, e {\sl bons} aliados... % Leblon, absurdo \mysection{ta-saindo-tudo}{``Que bom, tá saindo tudo''} \mydate{2015nov08} Um cara chega no homeopata com um furúnculo gigantesco no cotovelo, doendo a beça e saindo pus. O homeopata vê aquilo, abre um sorriso de orelha a orelha, e diz: ``que bom, tá saindo tudo!'' \medskip Em 26/out/2015 eu anunciei timidamente\footnote{\url{https://www.facebook.com/groups/assexuadostambemamam/permalink/683968001738311/ }} o link pros textos deste zine no grupo Assexuais, dizendo: \begin{quote} Gente, eu continuo achando que o termo que eu inventei pra me descrever há quase 15 anos atrás - ``sexofóbico'' - é mais adequado (e mais interessante!!!) do que ``demissexual'' ou ``assexuado''... Tou fazendo um zine no qual boa parte dos textos é sobre isso. Talvez interesse... \end{quote} As reações foram hostis. Pessoas dizendo que o termo ``sexofóbico'' é ruim porque é pesado, depois algumas falas na linha desta, % \begin{quote} O foco do grupo é promover o encontro de pessoas dentro do espectro da assexualidade e desmistificar a ideia de que somos doentes por não gostarmos de sexo. Pra gente não é doença; não estamos doentes. Por isso usar o termo sexofóbico é meio ofensivo na nossa opinião. \end{quote} % e depois duas pessoas me disseram que eu devia tentar fazer terapia... o que me deixou {\sl bem} surpreso! Fiquei pensando em qual era a visão dessas pessoas de ``terapia'' - e entendi, pela enésima vez, que linhas diferentes de Psicologia têm visões bem diferentes do que é tratamento, o que é doença e o que é saúde. Nas linhas que fazem mais sentido pra mim, quando a gente tem problemas grandes e enraizados demais, {\sl produzir} a partir deles é uma das coisas mais saudáveis que podemos fazer - e é melhor ainda quando a gente produz algo que pode ajudar outras pessoas que têm questões parecidas. Eu pensei em explicar isso no grupo e dizer que, pôxa, na minha visão quem acha que histórias traumáticas não devem e não podem ser discutidas abertamente é que precisa de terapia. Alías, estávamos no auge da campanha do \#PrimeiroAssédio - mas mesmo assim eu acabei não respondendo nada. % Local Variables: % coding: raw-text-unix % End: