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{\bf História de T}

(29/dez/2014)
\medskip

Deixa eu contar uma história do meu tempo de muita testosterona -
aliás, melhor, do tempo em que eu vivia envenenado por
testosterona. Vou contar só uma delas, porque esse tipo de coisa
acabava acontecendo tipo uma vez a cada dois anos.

Primeiro um pouco de contexto. Em 2001 eu estava no meio do doutorado,
estudando pelo menos umas 12 horas por dia, e pensando nos meus
assuntos de pesquisa quase o tempo todo, até quando eu dormia. Eu
tinha um bocado de tempo ``livre'', e eu aproveitava pra fazer aulas
de coisas como circo - acrobacia aérea - e Tai-Chi, pra eu ter mais
energia e não enlouquecer.

Pois bem. Até alguns anos antes disso a minha estratégia de vida
era baseada em eu ser magro e frágil e ser covardia alguém me
bater; ou, em outras palavras, em os caras fortes nunca me verem como
alguém que competia com eles.

Eu nunca soube lidar com as babaquices machistas que os caras falam
pros outros amigos babacas machistas rirem, e em 2001 eu comecei a
pensar o seguinte: alguém tem que começar a mostrar pra esses
caras que nem todo mundo acha essas babaquices engraçadas - e como
ninguém mais tá fazendo isso, porque não tem ninguém mais
sentindo muita necessidade de fazer isso, esse alguém vai ter que
ser eu.

A gente acha que Tai-Chi deixa as pessoas calmas, mas no meu caso
não foi bem assim - Tai-Chi me deixou poderoso, controlado e
preciso.

Eu vou contar a história da segunda vez em que eu ``fiz alguma
coisa''.

Era 2004, acho, e eu e umas dez outras pessoas passamos meses
preparando um evento de Software Livre. O evento ia acontecer num
domingo, de manhã e de tarde, num espaço cedido pelo Insitituto
de Física da Universidade Federal Fluminense, em Niterói, e
quase todo mundo da organização morava no Rio.

No sábado de tarde eu e mais uma meia dúzia de pessoas fomos pra
lá pra UFF pra instalar nos computadores as coisas que faltavam. A
gente achava que ia ser fácil, mas lá ficou claro que a gente ia
ter que virar a noite trabalhando... e às duas horas da manhã a
gente viu que a gente ia ter que correr na casa do Diogo, num
subúrbio do Rio, pra pegar o computador dele e fazer sei lá mais
o quê, pra poder terminar tudo mais rápido.

A gente foi no fusca do Luís, com o Luís dirigindo, e na volta,
lá pelas 7 da manhã, a gente pegou duas pessoas no caminho -
dois palestrantes do evento - pra dar carona pra elas pra Niterói.

A cena que eu quero contar aconteceu no meio da ponte Rio-Niterói.
No banco de trás do Fusca estávamos eu, à direita, o Diogo no
centro, e à esquerda um dos caras pros quais a gente deu carona.
Não lembro o nome dele, então vou chamá-lo de O Imbecil.

O Imbecil tava falando que tudo era coisa de viado - era a única
``brincadeira'' que ele conseguia fazer pra socializar.

Aí ele disse que gato era coisa de viado.

Aí o Diogo disse que tinha 8 gatos.

A gente tinha acabado de passar horas na casa do Diogo com os 8 gatos.

Então. Eu já tava vendo tudo vermelho, e eu sabia que se eu
não fizesse nada, se eu ficasse em silêncio e fosse cúmplice
daquela idiotice, eu ia passar os meses seguintes muito mal.

Eu disse pro Imbecil que esse negócio de ``isso é coisa de
viado'' é coisa de viado.

Eu disse que se ele tratava a gente como homens eu ia tratar ele como
homem também.

Eu me debrucei por cima do Diogo, que, lembrem, era quem estava no
meio do banco de trás, e apertei o pescoço do Imbecil com toda a
força, e enquanto ele ficava roxo eu berrava que ele era um covarde
e outras coisas, e mandava ele reagir. Eu queria ficar batendo a
cabeça dele contra o vidro do carro, mas ele ficou molinho pra eu
não bater muito, e não deu pra eu bater.

Não sei quanta experiência vocês têm com essas coisas, mas
quem tem alguma sabe que nós somos animais - brigas são
simplesmente situações de muita energia, e elas em geral acabam
quando o vencedor se define, ou quando a gente resolve de algum outro
jeito, juntos, essa energia toda que apareceu, e transforma essa
energia de briga em outra coisa. Em brigas de cães ou de ursos, por
exemplo, raramente alguém se machuca muito - a briga termina antes.
Com humanos é assim também, em geral.

Aí a gente chegou no evento, e as pessoas ficaram sabendo dessa
história, em várias versões - algumas pessoas até
perguntaram pro Imbecil o que eram aquelas marcas de unha no
pescoço dele - e claro que não aconteceu nada comigo... primeiro
porque a história era engraçada e exótica o suficiente pras
pessoas ficarem à vontade de ficar do meu lado ao invés de do
lado do Imbecil, e segundo porque o traço principal do universo
masculino, pelo menos aqui no Brasil, é o direito à babaquice.
Essa foi uma das poucas vezes nas quais eu exerci o meu direito à
babaquice ao invés de ficar sempre tentando pateticamente ser
racional e respeitável, e foi incrível!...

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Essa história é uma das mais preciosas que eu tenho entre as
minhas memórias. Desculpem, eu sei que muitos de você vão
ficar chocados, mas essa história é como uma pequena jóia pra
mim... talvez - e isto está me ocorrendo agora - porque foi uma das
pouquíssimas vezes nas quais eu consegui usar o meu lado masculino,
que em geral era tão problemático, pra fazer algo espetacular.




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