Primeiro vou "delimitar o meu objeto de estudo"... Isto é, vou e criar certas separações - artificiais, claro, como todas as separações - e nomear os vários pedaços do objeto original, que agora foi separado em vários. (Sugestão de leitura: "O Zen e a arte da manutenção de motocicletas", capítulos 13 e 29). Alunos (num curso) ______ / \ | bons ---> estudam | | aprendem | | passam | | | ruins --> ???... --linha de corte-- | | | muito --> não estudam | ruins | não aprendem | | não passam \______/ Os alunos "bons" já sabem estudar muito bem. Eles entram em qualquer curso, aprendem bem mais do que o mínimo ("sozinhos" - vou voltar a isto depois) e passam. Não precisamos nos preocupar muito com eles. Os alunos muito ruins não estudam, daí não aprendem e não passam. Como eles são reprovados eles vão ter que fazer o curso de novo, e da próxima vez eles talvez passem a estudar e saiam da categoria "muito ruins". Não vamos nos nos preocupar muito com eles. Só vou falar dos alunos "ruins" - O que eles fazem pra passar, como eles vêem aprovação, reprovação e cola. Alguns papéis do professor: * fazer com que os alunos estudem, * fazer com que eles aprendam, * agir como "filtro" - reprovar os que não aprenderam o suficiente * definir onde está a linha de corte A noção de "currículo oculto" ============================= Para introduzir a noção de "currículo oculto" vou usar uma citação. Paula Brügger, "Amigo Animal", p.73: É preciso pensar ainda no "currículo oculto" das nossas Ciências Biológicas (ou serão necrofílicas?). Currículo oculto é o conjunto de normas e valores que são passados subliminarmente, sem serem mencionados explicitamente quando da exposição das metas e objetivos educacionais. Assim, por exemplo, quando premiamos quem participa de experimentos de vivissecção, e não damos ouvidos ou até punimos quem e' contra, estamos - e isso vai além do tema em debate - premiando a subserviência. Isso não é autoridade, mas autoritarismo. A verdadeira educação coincide com liberdade, não com coerção (a respeito dos três últimos parágrafos, veja também Brügger, 1999, pp.143-154). A Universidade ============== Agora vou dividir a "universidade" (do ponto de vista de um aluno, que faz vários cursos, com um objetivo final) em 9=3×3 partes. Os cursos têm não só partes "explícitas/concretas" (a coluna 1 abaixo) como também _duas_ partes ocultas, que podem ser vistas como separadas. Numa visão infantil dessa divisão a parte "oculta 1" seria a "boa", e a parte "oculta 2" seria a "má"... mas vamos usar outra terminologia - "parte boa" e "parte má" seria primário - e errado - demais. explícitas/ ocultas I ocultas II concretas ("utópicas") ("reais/duras/amargas") _____________________________________________________________________________________ | | currículo/ | ementas/programas visualização gráfica, lidar com regras, | conteúdo: | dos cursos; mudança de representação, expectativas, | | provas abstração, generalização, rotina, métricas: | | particularização, "subserviência" | | escrever claramente, | | argumentar corretamente, | | resolver problemas, | | "pensar" (<- vago, clichê) | | | objetivos: | diploma aprender; "profissionalismo" e | | emprego pensar autonomamente; "seriedade" (ou | | linguagem; aparência suficiente de; | | "biblioteca" ver cit. Max Weber) | | | regras: | regulamento "doutrina jurídica"; "política": | | como julgar e resolver casos como encaminhar processos, | | ambíguos e conflitos; como conseguir bons pareceres, | | princípios maiorias em votações, | | aprovações de projetos | |_____________________________________________________________________________________| Nós queremos formar bons profissionais. O que são "bons profissionais"? Duas definições _ortogonais_: (i) pessoas que aprenderam muito, (ii) pessoas que seguem regras e se encaixam nas métricas. O bom profissional no sentido (i) é o que se concentrou nas partes "ocultas I" do currículo. O bom profissional no sentido (ii) é o que se concentrou nas partes "ocultas II" do currículo. Agora que temos duas definições _independentes_ de "bons profissionais" o resto da discussão vai ficar bem mais fácil... O profissional "perfeito" tem muito das duas componentes acima... Mas desenvolver cada uma das duas componentes demanda energia, e cada pessoa, em cada situação, vai escolher desenvolver mais ou menos de cada uma das duas componentes. Uma premissa (minha - não tenho como conseguir que todo mundo concorde com ela): Alunos em pânico se guiam por métricas. Ou seja, sob pressão os alunos vão tender a se focar muito mais nas partes "ocultas II" do que nas partes "ocultas I" - e daí, se eu preciso que eles se dediquem mais às partes "ocultas I" eu preciso criar condições para que eles saiam do estado de pânico. As três universidades ===================== Pra simplificar o que vai vir depois, deixa eu dar nomes mais curtos para as colunas da tabela acima: vou chamá-las de "0", "1" e "2" - ou de "universidade 0", "universidade 1" e "universidade 2", ou de "conhecimento", "autonomia" e "subserviência". Fato: quase todos os professores ficam muito frustrados com a "falta de maturidade" (<- vou falar bem mais sobre esse termo depois) dos alunos nas colunas 1 e 2. A gente sabe muito claramente que os alunos chegam na universidade com pouco "conhecimento" (coluna 0), mas a gente fica surpreso com como bem poucos deles sabem estudar sozinhos ("autonomia" -- coluna 1) e com a falta de disciplina deles (no sentido de bagunça em sala de aula - coluna 2). Agora algo que eu adoraria enunciar como um "fato", mas não tenho certeza suficiente - talvez seja só uma impressão. Antigamente os alunos valorizavam muito os professores que conseguiam não ser autoritários - os professores não-autoritários eram automaticamente aliados no sentido da seção "Os espelhos". Hoje em dia (pra simplificar) um professor não-autoritário é visto como ingênuo, fraco, loser, e talvez até como alguém que "não pode e não deve ser respeitado", porque é uma "má influência" - é alguém que "não sobreviveria ao `mundo real' e às pressões do mundo moderno, competitivo, e do mercado de trabalho". Obs 1: há um conflito de gerações aqui. A minha geração - e a da maioria dos professores - lutou pra conseguir relações menos autoritárias ("menos doentes") em sala de aula. A geração atual, que não tem visão histórica, não tem nem como entender isto. Obs 2: é fácil ir da "universidade 1" para a "universidade 2": um professor chega todo idealista, fica frustrado, é visto (e se vê) como idiota, e vira um autoritário ("Vocês vão se ferrááár na próvááá! Vocês vão se ferrááár na vííídááá!"). Ir na direção 2->1 - deixar de ser rígido, autoritário, desconfiado, etc - me parece mais difícil. Empresas e demissões ==================== Em empresas a posibilidade de demissão é uma ferramenta de pressão. A UFF não é uma empresa. Em primeiro lugar, porque numa empresa é relativamente fácil demitir - em universidades públicas não. Isto vale para: * professores, * alunos (<- pense em "jubilamento" ao invés de "demissão"), * funcionários. Isto força a gente a se virar com o que a gente tem - incluindo lidar com as nossas falhas e as dos outros. Conseqüências de tentar ignorar os alunos "ruins" ================================================= Se a gente resolver, por preguiça, que a universidade é para os 30% dos alunos que já vêm bem preparados (os "bons alunos", que já sabem estudar sozinhos) e a gente tentar só fazer o papel de "filtro", pode acontecer o seguinte: os outros 70% dos alunos - tanto os "ruins" quanto os "muito ruins" - vão ver que eles foram aprovados no vestibular, mas não conseguem aprender quase nada nos cursos. Aí acho que o que esses alunos vão sentir e tentar fazer vai ser uma mistura de: * tentar aprender sozinhos a toque de caixa, * frustração, * sentimento de inadequação, * revolta, * vão questionar as regras, os conteúdos e os métodos de ensino, * vão tentar encontrar as brechas nas regras, * vão encontrar modos de conseguir a pontuação mínima, mesmo que colando nas provas e trabalhos, * vão encher o saco da gente pedindo pontos a mais onde não merecem - questões de prova, etc. Uma frase que resume tudo isto: "eu tenho o direito de passar". Repare: Nem tudo que a gente quer medir pra decidir quem deve ser aprovado é realmente mensurável. Nossas métricas não são totalmente objetivas, e precisamos que os alunos confiem o suficiente nessas "métricas" meio objetivas, meio subjetivas. Essa confiança tem que ser reconquistada a cada momento. É até possível simplesmente "ignorar" os alunos ruins, se formos bastante rígidos, claros nas nossas posturas e tivermos sempre muita certeza do que estamos fazendo, mas essa "rigidez" não pode ser a única atitude possível... Os espelhos =========== Há várias relações possíveis entre professores e alunos - e acho que elas costumam se formar por uma "brincadeira de espelho", na qual cada lado copia, conscientemente ou inconscientemente, a atitude do outro. Por exemplo: às vezes professores e alunos são "amiguinhos", e contam piadas, sorriem, fazem brincadeiras, são camaradas uns com os outros, se dão tapinhas nas costas, e relevam os erros dos outros - inclusive, talvez, digamos, colas não-descaradas. Em outros casos professores e alunos são "inimigos": os professores desconfiam sempre dos alunos, pressionam os alunos de todos os modos possíveis, e os alunos vão encontrar modos de trapacear sem violar as regras - porque esse professor não merece confiança, e porque a punição por violar as regras vai ser pesada. Um outro tipo de relação possível acontece nas matérias mais avançadas, onde fica mais claro que professores e alunos têm um objetivo - difícil - em comum. Por falta de outra palavra melhor vou chamar esta relação de "aliados". [...] Trajetórias =========== Podemos pensar que cada aluno tem uma trajetória. Eles mudam com o tempo, então um aluno "a" corresponde a pontos a_2009, a_2010, etc. Um diagrama (improvisado, como sempre): /---> indústria a_2009 a_2011 -> ... \ ^ \---> cargo público v / a_2010 -> b_2010 b_2009 -> ... ----\ \ v Lixo c_2009 -> ... -> desemprego entrevistas (o que os departamentos de RH julgam?) projetos com amigos --> ? O aluno "a", que é um aluno muito bom, oscila um pouquinho durante a faculdade, mas depois se forma e imediatamente consegue um emprego - ou um na indústria ou um cargo público. Não precisamos nos preocupar com o aluno "a". O desempenho do aluno "b" oscila durante a faculdade entre "médio", "ruim" e "péssimo". Quando ele sai da faculdade - não importa se ele terminou o curso ou não - ele vai pra lata de lixo. Nós podemos dizer que não havia muito que pudéssemos fazer por ele... então o aluno "b" também não nos interessa, e não vamos nos preocupar com ele agora. O aluno "c" é um aluno normal - bom, mas não incrivelmente bom. Ele termina a faculdade e passa um tempo desempregado, fazendo entrevistas de emprego (e ele se pergunta: o que é que é avaliado nestas entrevistas? Como ele pode impressionar melhor os departamentos de RH?), e talvez ele tente participar de projetos junto com amigos - microempresas, talvez - É nesse aluno "c" que eu quero me concentrar. Se ele colava durante os cursos da faculdade, em que é que as "habilidades de cola" dele váo ajudá-lo nos projetos com amigos? Se ele aprendeu a agradar os professores e a passar nos cursos chorando por pontos nas provas e se fazendo de coitado esforçado, será que isto ajuda ele a se dar bem nas entrevistas de emprego? Acho que em algumas sim, em outras não... O que é "medido" nessas entrevistas e nos estágios? Outras perguntas: Como cada aluno se coloca (em público)? Alguns aprender a expôr idéias mais claramente, alguns são mais tímidos, muitos não falam nada muito arriscado... A universidade deveria ser o lugar onde aprendemos a pensar mais claramente e a dialogar melhor com as pessoas em torno de nós. Que tipo de trabalhos cada aluno procura depois que se forma? Podemos acrescentar no diagrama das trajetórias dos alunos a trajetória pregressa de cada um. De onde o aluno "a" vem? Ele tem uma boa base... Ele estudou em escolas ótimas? Como são a família dele e a casa dele? De onde os alunos b e c vêm? Sobre os alunos que se formam ============================= Eu tinha inventado as categorias "alunos bons", "alunos ruins" e "alunos muito ruins". Podemos imaginar que há algo como uma "mobilidade social" entre estas categorias - mas vamos imaginar que as mobilidades ascendentes e descendentes se cancelam, e que a "taxa de melhora" dos alunos durante o curso se cancela com o aumento de exigência nas matérias à medida que elas ficam menos básicas. Eu tinha suposto que (pelo menos nos primeiros períodos - já que eu só estou dando matérias para os primeiros períodos) os alunos "bons" são 30% da turma; vou supor que os "ruins" aprovados são outros 10% da turma. Então - já que eu supus esses cancelamentos todos, e mais outros que eu não escrevi - 30% dos alunos que entram na faculdade se formam como "alunos bons", e 10% se formam como "alunos ruins". A universidade é só para estes 40%? Não. Ela é pra transformar, do melhor modo que conseguirmos, todos os alunos que entram. Como? De que modo? Isto não tem uma resposta simples. Como professores universitários nós temos bastante autonomia. Eu entendo esta autonomia que nós é dada como querendo dizer: "usem do melhor modo possível o dinheiro público que está sendo investido em vocês". Obs: veja a citação em inglês em: http://angg.twu.net/omnisys.html#proletarizacao (find-TH "omnisys" "proletarizacao") E dentre os alunos que se formam alguns vão ser alunos "ruins". No meu modelo simplificado se formam os 30% de alunos "bons" e outros 10% que são alunos "ruins". Nem sempre a distinção entre os "bons" e os "ruins" vai se refletir nas notas. Alguns alunos que quase só interessam pela "Universidade 1" tiram notas que são só razoáveis, porque eles se concentram em aprender o máximo possível, e às vezes eles podem não se interessar por fazer certos trabalhos, podem tentar resolver certas questões das provas por caminhos mais complicados que nem sempre dão certo, etc. Alguns alunos "ruins" são tão bons na "Universidade 2" que eles encontram todas as brechas nas regras, "otimizam" a energia que investem nos trabalhos, respondem exatamente as coisas que dão pontos nas provas, e contratam advogados para defendê-los dos professores que tentam exigir deles muito do currículo oculto da "Universidade 1". Espertalhões ============ Vou introduzir um termo - temporariamente, e depois vou até mostrar como ele é falho - pra me referir a esses alunos "ruins" muito hábeis, que encontram todas as brechas nas regras e se formam com notas otimas: vou chamá-los de "espertalhões". Uma das tarefas dos professores é dificultar a vida dos "espertalhões", para que ou eles sejam reprovados ou eles reconheçam que vale mais a pena - porque é mais fácil, mais garantido, o que for - passar "estudando" e "aprendendo" do que "trapaceando". Em algumas profissões os "espertalhões" vão ser exatamente os profissionais mais competentes de todos... Uma citação do "No Logo", do fim do cap.15: By some accident of fate, on February 25, 1997, the multiple layers of anti-corporate rage converged over the Mighty Ducks hockey arena in Anaheim, California. It was Disney's annual meeting and about 10,000 shareholders crowded into the arena to rake Michael Eisner over the coals. They were upset that he had paid more than $100 million in a severance package to Hollywood superagent Michael Ovitz, who'd lasted only fourteen scandal-racked months at Disney as second in command. Eisner was further attacked for his own $400 million multiyear pay package, as well as for stacking the board with friends and paid Disney consultants. As if shareholders weren't angry enough, the obscene amounts of money lavished on Ovitz and Eisner were thrown into harsh relief by an unrelated shareholders' resolution chiding Disney for paying starvation wages to workers in its overseas factories, and calling for independent monitoring of these practices. Outside the arena, dozens of National Labor Committee supporters were shouting and waving placards about the plight of Disney's Haitian workforce. Of course the monitoring resolution was trounced, but the way the issues of sweatshop labor and executive compensation played off one another must have been music to Charles Kernaghan's ears. Eisner, who apparently expected the gathering to be little more than a pep rally, was clearly caught off guard by this confluence of events. Wasn't he simply playing by the rules --- making his shareholders rich and himself richer? Weren't profits up a healthy 16 percent from the year before? Wasn't the entertaining industry, as Eisner himself reminded the restless gathering, "extremely competitive"? Ever the expert at speaking to children, Eisner ventured: "I don't think people understand executive compensation". Pra simplificar a discussão, vamos supor que não queremos formar "espertalhões" nem em cursos de Ciência da Computação nem em cursos de Engenharia de Produção. Aliás, vamos supor algo um pouco mais fraco e mais razoável: que não queremos formar "espertalhões" em cursos de CC e EP _oferecidos por universidades públicas_. Vampiros e parasitas ==================== O termo "espertalhão" é muito primário: ele pinta esses alunos tipo "Universidade 2" como vilões de modo muito caricatural. Quantos destes alunos se assumiriam como "espertalhões"? Muito poucos. Do ponto de vista dos professores este termo pode parecer adequado, já que sentimos muito do que eles fazem como trapaças, e temos que encontrar modos de nos defender deles. Aliás, na verdade não queremos nem nos defender "dos alunos espertalhões"... cada aluno, cada pessoa, age "honestamente" em certas situações e "desonestamente" em outras; um aluno que esteja "lutando" contra um curso absurdo e difícil trata esse curso como um inimigo a ser vencido. Queremos nos livrar do _lado desonesto_ de cada aluno. No fim de 2009.2 eu tive que lidar com casos graves de cola nas minhas matérias - e depois com os alunos que queriam se justificar, e que queriam outras chances, ou seus pontos de volta. Se conversamos com os "espertalhões" - e eu tive que fazer bastante isso no final de 2009.2 - vemos que eles têm uma visão de mundo mais ou menos coerente, na qual colar é algo cabível - pelo menos não é algo tão grave quanto para os professores. Não basta dizermos para eles que colar é "mau" e "errado", ou que é "crime", ou "contra a lei", ou "punível dos jeitos tais e tais", etc. Precisamos ter uma visão clara do que a universidade deve ser, que não seja totalmente incompatível com a visão deles, e que permita uma transição gradual, da visão atual deles para a "nossa". Uma aluna envolvida nesse caso de cola em 2009.2 passou mais de duas horas (!) tentando me convencer a deixá-la passar direto, sem fazer a VS, porque se eu só anulasse as questões da prova dela que _obviamente_ tinham sido copiadas de outras pessoas, e não descontasse nenhum ponto dos trabalhos de grupo, ela teria exatamente a nota necessária pra passar direto. E ela "precisava" se formar no número mínimo de semestres, por uma série de motivos que não cabem aqui. Se eu tivesse a terminologia certa na época, e princípios mais claros, talvez eu tivesse sido capaz de argumentar muito mais solidamente sobre a minha posição, e evitar muito desgaste de ambas as partes. Repare que uma coisa é eu ter os meus princípios claros _pra mim mesmo_ e agir de acordo com eles; outra coisa é eu ser capaz de explicá-los pra alguém - no caso, um aluno que colou - e que tem seus próprios princípios, diferentes dos meus, e convencer a outra pessoa dos meus princípios. Vários professores com os quais eu conversei, de vários departamentos do PURO, tiveram muitíssimos mais casos de cola, e de plágio em trabalhos, até em matérias dos últimos semestres de cada curso, do que o que seria aceitável ("aceitável"? Whatever)... O problema é endêmico. Cada aluno que cola - ou plagia; vou usar "cola" como termo geral - tem seus motivos pessoais para ter colado em cada determinada situação. O que não está claro o suficiente para os alunos - e que é realmente difícil de entender nos dias de hoje - é que a cola tem conseqüências _sociais_ muito ruins: só pra falar das mais óbvias, se muitos alunos de uma turma passam colando os alunos honestos se sentem uns otários, e além disso o nível dos cursos seguintes desce, porque os professores têm que lidar com uma turma que não sabe os pré-requisitos bem o suficiente; e quando esses alunos se graduarem o diploma deles vai valer menos do que deveria - porque não vai indicar que eles sabem o que deveriam saber - e a universidade vai aos poucos perdendo confiança e respeitabilidade. Nas primeiras semanas depois desses casos de cola em 2009.2 eu pensei em usar o termo "parasita" para os alunos que colavam - principalmente para os que disseram que "precisavam se formar logo" (a qualquer custo!) porque "precisavam do diploma"... o parasita, pra sobreviver (esses alunos "precisavam do diploma" pra sobreviver) se alimenta do hospedeiro - que é a universidade; ou, numa visão maior, o país - e destrói, ou enfraquece, o hospedeiro. Mas pra que a gente pudesse usar o termo "parasita" em discussões com esses alunos sem que o termo fosse visto como uma ofensa teríamos que transformá-lo num termo técnico - o que poderia acontecer se esse termo passasse a ser usado por muitos professores para discutir regras e princípios, em discussões sancionadas pelo Departamento, que fossem tornadas públicas depois - e que ajudassem os alunos a entenderem porque cola é algo grave. Outra idéia: no "Deixa ela entrar" ("Låt den rätte komma in"), um filme sueco que estreou aqui no início de 2010, uma das personagens, Eli, é uma vampira; pra ela sobreviver pelo menos um "humano" tem que morrer por semana. Quando o outro personagem principal, Oskar, descobre isso ele passa a ver a Ann como um monstro, e decide deixar de ser amigo dela. Ela diz pra ele (achei a escolha de linguagem bacana - os dois têm aproximadamente 12 anos): "Seja eu um pouquinho!" http://en.wikipedia.org/wiki/Let_the_Right_One_In_(film) http://www.imdb.com/title/tt1139797/ [...] A floresta e a biblioteca ========================= Gary Snyder: "The Forest in the Library" (find-LATEX "forest.tex") http://angg.twu.net/LATEX/forest.tex.html http://angg.twu.net/LATEX/forest.pdf A partir do último parágrafo da primeira página. Hoje em dia o que Gary Snyder chama de "a biblioteca" incluiria a internet [e as famílias degeneraram, e os "teaching elders" muitas vezes passaram a ser a televisão]. Um modo de ver a universidade: * A universidade é o lugar da linguagem. * O objetivo da universidade é pôr as pessoas (mais) em contato com 3000 anos de cultura escrita. * O centro da universidade é a biblioteca, e durante os cursos os alunos aprendem a "navegar" na bilioteca... eles passam a entender bem certos livros básicos - por si sós já bastante difíceis; por exemplo, livros de Cálculo - e com isto muitos outros livros, e um corpo enorme de conhecimentos técnicos, se tornam acessíveis. Simbolicamente, quando um aluno termina o curso, ele prepara um TCC (ou dissertação, ou tese) que passa a fazer parte da biblioteca. Os alunos entram sem nem saberem ler textos técnicos; eles saem (ou: deveriam sair) sendo capazes de ler e de escrever, com uma noção de como o conhecimento é produzido, e dialogando "de igual para igual" com esses 3000 anos de cultura escrita. A nossa situação atualmente é desesperadora. (Aqui vou falar de mim, mas vou escrever sempre "nós"). Temos sensações recorrentes de frustração, impotência e engasgo. Deveríamos estar sendo capazes de dialogar com a Reitoria da UFF, com a Prefeitura, com os alunos, com a sociedade de Rio das Ostras, e com os outros professores do PURO - mas parece que só levamos um fora atrás do outro, como se hoje em dia fosse antiquado e ridículo tentar discutir com base em argumentos e princípios - como se hoje em dia tivéssemos que ser sempre "profissionais" e "práticos". Pessoas com um pouco mais de familiaridade com os tais "3000 anos de cultura escrita" sabem que essa idéia de "praticidade" é recente. Uma citação interessante: Max Weber, de "A ética protestante e o espírito do capitalismo": http://angg.twu.net/omnisys.html#max-weber (find-TH "omnisys" "max-weber") Now, all Franklin's moral attitudes are coloured with utilitarianism. Honesty is useful, because it assures credit; so are punctuality, industry, frugality, and that is the reason they are virtues. A logical deduction from this would be that where, for instance, the appearance of honesty serves the same purpose, that would suffice, and an unnecessary surplus of this virtue would evidently appear to Franklin's eyes as unproductive waste. And as a matter of fact, the story in his autobiography of his conversion to those virtues, or the discussion of the value of a strict maintenance of the appearance of modesty, the assiduous belittlement of one's own deserts in order to gain general recognition later, confirms this impression. According to Franklin, those virtues, like all others, are only in so far virtues as they are actually useful to the individual, and the surrogate of mere appearance is always sufficient when it accomplishes the end in view. It is a conclusion which is inevitable for strict utilitarianism. The impression of many Germans that the virtues professed by Americanism are pure hypocrisy seems to have been confirmed by this striking case. But in fact the matter is not by any means so simple. Benjamin Franklin's own character, as it appears in the really unusual candidness of his autobiography, belies that suspicion. The circumstance that he ascribes his recognition of the utility of virtue to a divine revelation which was intended to lead him in the path of righteousness, shows that something more than mere garnishing for purely egocentric motives is involved. Para a maior parte dos nossos alunos a _aparência de honestidade_ é algo que claramente é importante, mas honestidade "real" é algo que não faz muito sentido... como é que uma pessoa A perceberia que uma pessoa B é "realmente" honesta? O que a pessoa B ganharia por ser "realmente" honesta, especialmente num mundo em que isto faria ela ser tão diferente? Esta honestidade não seria pra ela uma espécie de aleijão, uma rigidez que a forçaria a agir honestamente sempre, e que a impediria de lidar com o "mundo real" (o Brasil de hoje em dia)? Protestos ========= Uma das coisas que me deixou mais incomodado no PURO em 2009 foi a passeata contra a violência contra a mulher - achei ela muito primária. Uma citação do "No Logo" da Naomi Klein (do cap.13, "Reclaim the Streets" - p.316 na "10th anniversary edition"): Playing Politics ---------------- Not only is the confusion deliberate, but it is precisely this absency of rigidity that has helped RTS to capture the imagination of thousands of young people around the world. Since the days when Abbie Hoffman and the Yippies infused self-conscious absurdity into their "happenings," political protest has lapsed into a ritualized affair, following a fairly unimaginative grid of repetitive chants and scripted police confrontation. Pop, in the meantime, had become equally formulaic in its refusal to let the perceived earnestness of political conviction enter its ironic play space. Which is where RTS comes in. The deliberate culture clashes of the street parties mix the earnest predictability of politics with the amused irony of pop. For may people in their teens and twenties, this presents the first opportunity to reconcile being creatures of their Saturday-morning-cartoon childhoods with a genuine political concern for their communities and environment. RTS is just playful and ironic enough to finally make earnestness possible. Fiquei com a impressão de que num certo momento as decisões sobre o que fazer haviam se reduzido a decisões binárias: protesto ou não protesto, passeata ou não passeata... Este exemplo pode parecer ruim - não consegui escrevê-lo melhor - mas eu vejo esta mesma idéia das decisões binárias aparecendo em mil lugares. Se queremos nos comunicar com alguém que não presta atenção em nós e não vai nos ouvir - por exemplo, a Prefeitura - podemos tentar fazer algo grande - por exemplo, uma passeata com 400 pessoas - e aí com isso transmitimos _um bit_ de informação: a Prefeitura vai saber que "houve uma passeata", e só - e o que se dizia na passeata não importa, porque afinal ninguém entende nada mesmo - só a existência da passeata importa. Como fazer uma idéia se propagar - e transformar (pelo menos um pouco, do modo certo) o mundo em torno da gente - sem precisarmos juntar uma multidão do nosso lado, num abaixo-assinado ou num protesto? A Universidade - como lugar da linguagem e dos argumentos - e a "biblioteca" - como lugar de acesso à história, e como via de acesso a narrativas [a partir das quais a gente pode aprender como são construídas as narrativas que transformam quem as ouve/lê] - são exatamente os lugares para isto. Queremos formar os melhores "o quê"s? ===================================== Já mostrei que "queremos formar os melhores profissionais possíveis" é uma idéia ambígua - porque pode querer dizer pelo menos duas coisas completamente diferentes uma da outra -, e que além disso é limitada, já que só os alunos "bons", que no meu modelo simplificado são 3/4 dos que se formam, vão ser "bons profissionais" no sentido usual. [...] |
(Versão: 2010feb23)